Era Halloween, uma das mais tradicionais festas da cultura norte-americana e das mais celebradas pelas crianças. A consultora Cheryl Kilodavis levava seus dois filhos, Dkobe e Dyson, para comprar fantasias. Ao chegar à loja, Dkobe, o mais velho, foi direto àquelas de super-heróis. Dyson, ao contrário, dirigiu-se até uma sessão repleta de brilhantes asas de borboletas, vestidos de princesa e acessórios cor-de-rosa. Olhava tudo com extrema atenção, até que encontrou um vestido azul que o fez sorrir de orelha a orelha. ;Ele retirou do cabide, mediu em seu corpo e começou a implorar que eu comprasse. Meu filho desejava se vestir de princesa no Halloween;, lembra Cheryl, em entrevista à Revista.
Não era a primeira vez que Dyson, hoje com 5 anos, demonstrava interesse por peças feminina. Desde os 2 anos, gostava de roupas cor-de-rosa, brilho e joias. Sua primeira reação foi de choque. Com firmeza, a mãe tentava tirar essas ideias da mente do filho, mesmo sem encontrar apoio no marido, Dean. ;Ele dizia que, se aquilo o fazia feliz, não havia problemas.; Mas ela não aceitava. ;Só quando Dkobe me perguntou porque eu não queria deixar Dyson ser feliz que percebi: eu estava fazendo a vida do meu filho miserável.; Em vez de repressão, decidiu pelo apoio.
Se, para ter uma infância alegre, Dyson precisava usar vestidos, não seria ela quem impediria. A história de como ela aceitou o processo de formação da identidade de gênero do filho tornou-se o livro My princess boy (Meu garoto princesa, em tradução livre), no qual ela conta como sua família entendeu que o mais novo era diferente do que esperavam. ;Claro que eu tinha uma imagem de uma família perfeita na minha cabeça. Mas o livro veio para falar de aceitação. Foi feito para começar e continuar um diálogo sobre como ajudar crianças a serem o que elas são;, garante Cheryl.
Se a falta de entendimento perante o diferente é comum na idade adulta, se torna ainda maior quando o alvo do preconceito é uma criança. Quando as discussões entram no âmbito da identidade de gênero, a incompreensão, em muitos casos, também é repressora, ocasionando comportamentos como o bullying.
Não há como definir o que é normal na formação da identidade de gênero de uma criança. ;Podemos dizer que o natural é que haja compatibilidade anatômica e mental;, afirma o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do ambulatório de transtorno de identidade, de gênero e orientação sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo. Ou seja: se nasce com corpo masculino e a mente masculina, ou o contrário. Entretanto, diferente da sexualidade, o Transtorno de Identidade de Gênero leva a pessoa a não se reconhecer na imagem que vê no espelho. E, apesar de raro, o processo se inicia ainda na infância.
Como os pais devem agir?
Sarah Iwankiw nasceu Michel e, aos 26 anos, trocou de sexo. ;Aos 3, em minha lembrança mais antiga, já vivia pegando as maquiagens e joias da minha irmã para usá-las.; Diferente de Dyson, o filho da consultora Cheryl Kilodavis (leia nas páginas 8 e 9), Sarah foi completamente proibida de exercer suas vontades relacionadas ao universo feminino. ;Fui vítima de bullying desde sempre, hostilizada pelos meninos e isolada pelas meninas. Quando, na infância, quis deixar o cabelo crescer, fui repreendida por minha mãe, que disse não ser coisa de menino. Nas aulas de teatro da escola, queria papéis femininos e meus pais desaprovavam.;
Segundo o psiquiatra Alexandre Saadeh, as histórias como a de Sarah são comuns no universo dos que tem o problema. Para o especialista, a liberdade que os pais de Dyson dão a ele pode ser boa, mas só se o garoto for mesmo portador do transtorno de gênero.
Isso porque nem toda criança que tem comportamentos relativos ao sexo oposto está indecisa quanto à sua identidade sexual. O psiquiatra Fábio Barbirato, diretor do Centro de Atendimento e Pesquisa de Psiquiatria da Infância e Adolescência (Capia) da Santa Casa do Rio de Janeiro, garante que, muito mais que olhar para dentro da criança, é preciso analisar o que ocorre à sua volta. ;A infância não dá estrutura para que sejam feitas escolhas sexuais. Muitas vezes, os filhos tomam atitudes baseadas nos desejos ou decepções dos pais;, argumenta.
Barbirato dá como exemplo um pai que, frustrado por não ter um varão, resolve projetá-lo na filha pequena, jogando futebol com ela ou vestindo-a com roupas de aspecto masculino. Ou uma mãe que estimula o filho a se comportar como a menina que ela sempre quis ser. Ainda há casos de filhos que, sentindo-se preteridos diante dos outros, assumem características dos irmãos para serem aceitos.
As escolhas sexuais, o desejo sexual direcionado a mulheres ou homens, garante Barbirato, só são definidos na adolescência. À infância cabem as definições de identidade e também de autoconhecimento. ;Se a criança apresenta um romantismo exagerado ou comportamento sexual direcionado, aí sim pode ser um problema.;
O psiquiatra elenca três justificativas para comportamentos como esse: abuso sexual, exposição a estímulos incompatíveis com a idade ou a falta de um modelo familiar estruturado. Não é o caso de Dyson. Parte de uma típica família americana, com pais que demonstram se amar, ele ainda tem o pai e o irmão de 8 anos como exemplos de identidade masculina tradicional. E, como outra prova do apoio ao filho mais jovem, Cheryl diz que a rotina em casa mantém-se a mesma. ;Dyson gosta de brincar nas árvores, chutar bolas de futebol, jogar games e pintar. A diferença é que ele faz isso de vestido.;
Aos pais que já surpreenderam os filhos imitando o sexo oposto, o primeiro alerta é contra a repressão. Depois, segundo o psiquiatra Alexandre Saadeh, vem a análise do sentimento da criança ao adotar comportamentos contrários ao seu gênero. ;Se há realização ou felicidade intensa, pode ser que a criança tenha um transtorno. Na maioria dos casos, ela quer apenas mais atenção.;
O exemplo Jolie Pitt
Fora do Brasil, as roupas masculinas da pequena Shiloh Jolie Pitt (à direita), filha do casal hollywoodiano Brad Pitt e Angelina Jolie, repercutiu em várias revistas sensacionalistas, que acusam os pais de quererem transformar a filha em um garoto. Os astros, no entanto, alegam acatar a vontade da filha, hoje com 4 anos, que desde os 2 anos começou a aparecer com figurino masculino.
Polêmica na área médica
Mas, e caso seja provado que a criança tem um transtorno de identidade de gênero? A Sociedade Internacional de Endocrinologia acredita que a solução é bloquear a puberdade. Sem a liberação hormonal da adolescência, os traumas decorrentes do desenvolvimento completo dos órgãos genitais naqueles que têm, comprovadamente, transtorno de gênero são atenuados. O corpo se mantém em uma espécie de eterna infância, o que daria tempo para as crianças crescerem e, de fato, entenderem se precisam ou não mudar de sexo. Alexandre Saadeh explica que não existe consenso médico no Brasil sobre o assunto.
O especialista tem levado a discussão a todos os congressos que participa, a fim de apressar as decisões e, com isso, evitar o sofrimento de quem tem o problema. ;Tenho recebido muitos adolescentes de 12, 14 e 16 anos que se declaram com transtorno de gênero. Mas, no país, só adultos podem mudar de sexo;, informa.
O acompanhamento psicológico e psiquiátrico leva dois anos, no mínimo. Durante esse tempo, a equipe médica conhece a vida do paciente, para analisar se ele pode chegar ao momento da cirurgia. ;Quando contei aos meus pais que queria ajuda, com 17 anos, eles me levaram em vários psicólogos e sexólogos. Os testes, entrevistas e diálogos são extensos, tristes e fazem você repassar muitas situações delicadas. Todos foram unânimes no diagnóstico e, em 2006, fiz a cirurgia;, recorda Sarah Iwankiw.
Desde 1997, o Brasil realiza, de forma experimental, o procedimento de mudança de sexo. Em 2002, foi autorizada a troca de homem para mulher. Em 2010, de mulher para homem. Atualmente, os estudos se focam na neofaloplastia, que é a construção de um pênis nos transsexuais femininos.
A formação da sexualidade
A partir do momento em que suga o leite da mãe para se alimentar, a criança começa a desenvolver sua sexualidade. ;Nos seres humanos, a sexualidade tem uma relação muito menos estreita com a vida instintiva. Ela também é construída através das influências culturais;, explica Alessandra Ricciardi Gordon, mestre em psicologia pela Unifesp e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
A especialista explica que o processo de aquisição de uma identidade de gênero ocorre logo após a primeira infância, que vai de 0 a 3 anos, e não é linear. As chamadas fases oral, anal e genital do desenvolvimento da libido acompanham as crianças até a adolescência. Na fase oral, em que a alimentação é o único esforço vital do bebê, características como a tolerância à frustração, voracidade e a separabilidade (a noção de que se é separado do outro) são mais estimuladas. Na fase anal, paralela ao amadurecimento das estruturas que permitem o funcionamento do esfíncter anal, se dá a retirada das fraldas. A necessidade de controlar as fezes, de acordo com Alessandra, auxilia a criança a entender que o mundo é um local que tem organização e disciplina, que tudo funciona segundo determinados parâmetros. ;Na fase genital, vai se encaminhar a escolha do objeto sexual, ou seja, o objeto amoroso.;
Para a psicanalista, somente um conhecimento maior dos desejos inconscientes dos pais do menino Dyson traria a certeza do transtorno de identidade de gênero. Sem um diagnóstico preciso, até mesmo a liberdade que Dyson tem pode trazer prejuízos. ;Naturalmente, não é útil para a criança e sua formação que os pais façam tudo que ela deseja, pois o ;não; é fundamental para a construção da sua personalidade.;
O toque na infância
Uma das maiores dificuldades dos pais é saber como reagir quando seus pequenos descobrem que tem órgãos genitais e decidem mexer com eles. Segundo o pediatra Eric Yehuda Schussel, do Departamento Científico de Pediatria do Comportamento e Desenvolvimento da Sociedade Brasileira de Pediatria, essa fase é importantíssima para uma vida sexual saudável na idade adulta. ;Só podemos ter prazer no sexo caso conheçamos o nosso corpo e a criança tem prazer em se descobrir.;
Essas descobertas, para Eric Yehuda, devem vir sempre acompanhadas de diálogo, que vai ser pautado na cultura do local onde a criança nasce, mostrando que não é errado se tocar, mas que há hora e lugar. ;E é bom lembrar: não há relação entre comportamentos infantis e a definição da sexualidade no futuro;, alerta o médico.
Transexualidade na mídia
Dois casos recentes envolvendo transtorno de identidade de gênero chamaram a atenção da sociedade brasileira. No primeiro, a brasileira Lea T (esquerda). surgiu como a primeira modelo internacional assumidamente transexual e hoje figura entre as 50 mais badaladas do mundo. Filha do jogador de futebol Toninho Cerezo, ela esteve entre as mais assediadas durante a última edição do São Paulo Fashion Week. Vivendo na Itália, a top, que ainda não fez a cirurgia para mudar de sexo, deixou claro, em entrevista para a apresentadora norte-americana Oprah Winfrey, que seu pai sente orgulho de quem ela é.
Em um caso menos glamoroso, o programa Big Brother Brasil teve, entre seus integrantes, a transexual Ariadna (direita). Depois de sofrer diversos abusos em casa, saiu do país e fez sua cirurgia no exterior. Mesmo entre participantes homossexuais, pôde se perceber preconceito em relação a Ariadna. O que demonstrou que a discussão sobre identidade de gênero no país ainda precisará de muito tempo para amadurecer.