postado em 02/03/2013 14:00
Cidade do Vaticano ; Os primeiros e os últimos momentos de Bento XVI como papa foram acompanhados de muito perto por um brasileiro criado no sertão do Rio Grande Norte. Flávio José de Medeiros Filho, de sotaque nordestino ainda bastante carregado, deixou o Brasil 13 anos atrás para ser seminarista em Roma. Há oito, vive dentro do Vaticano e ocupa um dos cargos de maior prestígio na Basílica de São Pedro, o coração da Igreja Católica.Discreto, embora muito falante, padre Flávio é um dos dois cerimoniários do megatemplo. Ou seja, é ele quem cuida de todos os detalhes das celebrações ali realizadas. Aos 35 anos, o diocesano tem acesso livre a espaços fortemente vigiados. Basta um aceno para circular livremente pelos pátios cercados pela Guarda Suíça e por altos muros. O serviço aos cardeais no altar valeu a ele o respeito da cúpula da Igreja.
No fim da tarde de ontem, exatamente 24 horas após Bento XVI deixar o Palácio Apostólico, padre Flávio falou ao Correio em um lugar escolhido por ele: uma passarela sobre um viaduto, com vista para o alto da basílica. ;Eu moro ali;, contou, entusiasmado, apontando para uma janela no topo de um prédio ao lado da Casa Santa Marta, onde os cardeais ficam hospedados durante o conclave.
No anonimato, esse brasileiro participou como poucos dos momentos mais importantes da Igreja na última década. Cantou o Evangelho na tradicional Missa do Galo de 2004, a última noite natalina do falecido papa João Paulo II. Em 6 de janeiro daquele mesmo ano (ele não esquece a data), serviu no altar em cerimônia celebrada pelo então cardeal alemão Joseph Ratzinger. Foi apenas a primeira das 174 ocasiões em que estiveram juntos. ;Há uma margem de erro para um pouco mais ou um pouco menos;, pondera.
Padre Flávio estava no meio da multidão acomodada na Praça de São Pedro quando foi anunciada a morte de João Paulo II. De volta ao seminário, quase à meia-noite, ouviu do superior que havia sido convocado para organizar a missa de início das exéquias do papa. Foi ele quem segurou a bacia com a água benta aspergida no corpo. ;Meus pais me viram na televisão naquele dia;, lembra, contente.
A partir dali, o potiguar não arredou mais o pé da Basílica. Cuidou da liturgia da cerimônia de abertura do conclave que elegeu Bento XVI e, na missa de posse do alemão, foi o primeiro a comungar das mãos dele. Pouco antes, entoara em latim, voltado para o novo pontífice, a passagem do Evangelho de São Mateus que diz: ;Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja;. ;Meu Deus do céu!”, suspira ele, recordando a cena.
Incrédulo
Neste ano, na segunda-feira de carnaval, padre Flávio se preparava para subir ao presbitério quando o avisaram do comunicado feito por Bento XVI, de que deixaria o cargo. Não acreditou. Pensou ser um ;mal-entendido de jornalistas;. Ao fim da missa, entrou na sacristia da Basílica e ;tudo estava consumado;, como descreve. ;Ouvia falar isso por aqui de vez em quando, mas não dava crédito, parecia algo utópico;, comenta.
O olhar e o ritmo dos passos de Bento XVI acusavam cansaço nos últimos meses de pontificado. ;Era um cansaço que nós pensávamos ser da própria idade, mas agora sabemos que também tinha a ver com o peso das preocupações;, completa. É uma fase, emenda o religioso, de renovar as esperanças. ;Os escândalos e as dificuldades existiram e deixaram uma marca terrível no coração da Igreja e da humanidade.;
A esperança à qual se refere padre Flávio vem da convicção, alimentada por ele, de que ;os filhos da Igreja são sujeitos a erros, mas a Igreja segue santa e imaculada;. ;É preciso que seja resgatada a dignidade de tantos cristãos e sacerdotes que continuam a dar a vida com total dedicação e amor à causa do Evangelho;, defende ele, demonstrando clara preocupação em preservar a imagem dos religiosos, desgastada por tantas denúncias de escândalos.
Padre Flávio está do lado dos que aplaudem o gesto de Bento XVI e, superado o susto da notícia da renúncia, passou a admirá-lo ainda mais. Na última quinta-feira, o potiguar acompanhou o instante em que o pontífice deixou o Palácio Apostólico em direção ao helicóptero que o levaria até Castel Gandolfo. O motorista do carro, relembra, chorava copiosamente. O pelotão da Guarda Suíça se despedia em clima fúnebre.
O coração do brasileiro, com tantas histórias para contar sobre Bento XVI, ficou apertado. ;Olhei nos olhos daquele homem e fiz o sinal da cruz;, conta. Para chegar à Praça de São Pedro a tempo de ver o helicóptero sobrevoando, o padre tentou cortar caminho pela porta de bronze do Vaticano. Foi barrado por um guarda suíço. ;Está fechada, não temos mais papa;, ouviu dele. A ficha caiu, e com ela as lágrimas. ;Chorei como criança;, confessa.
Como o mundo inteiro, padre Flávio quer saber quem será o novo papa. Tem alguns nomes prediletos na ponta da língua, mas sustenta a tese de que ;o Espírito Santo é quem sabe;. O garoto criado em Acari, terra de dom Eugênio Sales, testemunhou e seguirá testemunhando os rumos de uma instituição milenar. Por enquanto, como ele mesmo diz, está órfão, mergulhado em uma ;solidão animada pela esperança;.