Diversão e Arte

Sambista de 81 anos faz apresentações e improvisos pela cidade

O mineiro Carlos Elias é cantor, compositor e dançarino, além da marca registrada: a alegria contagiante

postado em 20/10/2014 10:04

Aos 81 anos, Carlos Elias coleciona histórias com Nelson Cavaquinho Carlos Elias é a cara do samba de Brasília. Os fãs do gênero já devem ter se surpreendido com a ginga do artista de 81 anos em apresentações e improvisos pela cidade. Cantor, compositor e dançarino, Carlos, além das coreografias, tem como marca registrada a alegria contagiante. As 24 horas do dias são poucas para ouvir as histórias desse homem que é enciclopédia viva do samba. A partir de hoje, o Correio relembra episódios que marcaram a vida do sambista de corpo e alma.

O mineiro se mudou ainda criança para o Morro do Pinto, no Rio de Janeiro. A cidade marcou a sua vida ao apresentá-lo para samba e para grandes nomes do ritmo entres eles, Nelson Cavaquinho. A parceria traz saudades e grandes momentos que Carlos Elias destrincha com detalhes em qualquer dedo de prosa descompromissada. "Nelson sempre fazia a primeira parte das músicas. Uma rosa na janela é uma delas. O tempo passou, ele morreu e não consegui mostrar a canção finalizada", recorda.

A amizade começou no Zicartola, um bar "com fachada cor de rosa e janelas verdes", de propriedade do compositor Cartola e de sua esposa, Zica. "Certa vez, marquei de encontrar com Nelson em um bar pequenininho, no centro do Rio, para que ele me mostrasse uma música. Havia apenas nós dois, o garçom, o dono do bar e mais um cliente. Acredita que o cara reclamou da cantoria? Anos depois, a mesma coisa aconteceu em um bar na W3 Sul. Pediram para parar e fomos embora. O local ficou vazio", conta.

A parceria acabou em 1986 com a morte de Nelson Cavaquinho. "Saiu no Jornal do Brasil uma foto bem grande dele no bar Amarelinho em frente ao Municipal. A notícia dizia: "morre o último jogral da música brasileira". Fiquei muito triste. Ele tinha me dado muitas ideias para outras músicas. Ele não iria mais fazer a primeira parte delas", lembra. Já sobre Cartola ; parceiro de Nelson e de Zé Keti nos shows do Zicartola, Carlos resume: "Ele era muito fechado e introvertido. Conversávamos pouco. Lembro-me de ter ido a casa dele apenas uma vez".

Em 1980, Carlos Elias participou de um projeto na Funarte em que compositores, da cidade interpretavam as próprias canções, como Zé Firmino e Valério Xavier. O sucesso foi tão grande que no ano seguinte ganhou nova edição.

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O maior sucesso
"Se eu fosse um cara de desistir das coisas, não chegaria a lugar nenhum", repete sempre, sem perder a humildade o sambista de sorriso largo. O maior sucesso de Carlos Elias teve um caminho difícil até encontrar a voz da intérprete que levou a canção para o Brasil. Canção da primavera foi escrita para ser lançada na quadra da Portela, um samba de terreiro. Mas, foi com a cantora Nara Leão que os versos do compositor ganharam as rádios do país.

"Para cantar na Portela no domingo, o dia mais animado, tinha que fazer uma temporada na sede velha antes, todas as quartas-feiras. Era para o povo aprender a letra. Não sei o porquê a minha música sempre ficava por último. Quando ia cantar, não tinha mais ninguém. Um dia alguém da diretoria disse que eu já poderia cantar no domingo. Pensei: não vai dar certo, ninguém aprendeu. Combinei com o diretor de harmonia para deixar eu cantar umas três vezes antes da bateria entrar para o povo aprender a letra. Na segunda vez, me disseram que o presidente mandou parar de cantar a música porque ninguém iria aprender. Nem liguei para isso", relembra.

Não por acaso, O ardo caminho do sucesso é o nome de um dos capítulos do livro que Carlos Elias reúne as histórias de sua vida e do samba brasileiro. Nele, recorda as dificuldades de ser reconhecido pelo seu trabalho e conseguir levar suas músicas para o povo. Após o episódio na Portela, ele mostrou Canção da primavera para um amigo na rádio Excelsior, que sugeriu que ele a apresentasse na tevê. O artista mineiro convidou Abílio Martins para interpretar a composição. ;No momento da gravação, Abílio e o pianista Luiz Reis não estavam entrosados. Depois fomos descobrir o motivo: Luiz era um excelente pianista, mas só tocava de ouvido e não sabia ler as partituras;, conta Carlos, aos risos.

Carlos Elias não esquece da emoção que foi escutar pela primeira vez seu samba no rádio. "Tinha um programa no rádio que se chamava Música também é notícia. Passava em três horários. Avisaram que a minha música iria tocar na hora do almoço. Contei para o meu pessoal ligar o rádio para ouvir. Fiquei naquela expectativa. Quando deu meio-dia, não tocou. Foi aquela gozação. Continuei sintonizado na estação. Às 16h, ouvi: ;Nara Leão lança novo compacto;. Aí veio a música. Foi muito bacana", recorda.

Para qualquer música, o período do auge um dia acaba. Porém, um encontro inusitado, daqueles que faz você pensar se foi sorte ou Deus, deu um novo empurrão para prolongar o sucesso do samba. "Um dia fui ao barbeiro e do meu lado estava outro camarada fazendo barba também. Disseram que ele era da rádio Tamoio e nos apresentaram. Ele ficou surpreso em saber que Canção da primavera era minha. Ele fazia a seleção da músicas que iriam tocar no programa. Colocou a composição para tocar de novo no rádio", revela sobre o encontro que lhe rendeu algumas alegrias.

"Me acordo e abro a janela
Sorrio e me sinto feliz
A primavera chegou
Trazendo quem eu sempre quis
Há nos jardins tantas flores
Na paisagem mais cores
Paira no ar um aroma de felicidade"
Trecho da música Canção da primavera, de Carlos Elias

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Temporada francesa

A casa noturna parisiense Favela Chic é o cenário das histórias do terceiro dia da série sobre o cantor, compositor, dançarino e agitador cultural Carlos Elias. Era 1997, quando Carlos, então funcionário do Itamaraty, foi transferido para França. Depois de passar pelo consulado brasileiro em Marselha, ele foi trabalhar na embaixada em Paris, cidade que marcou sua temporada no exterior. Ao ser questionado como é que a Favela Chic entrou na sua vida. Responde sem hesitar: "Não entrou. Fui eu quem entrei nela".

"Andava muito na noite, mas não conhecia a casa. Já tinha ouvido meus filhos falarem do lugar, mas, uma vez, de dia, resolvi procurar onde ficava. Era numa ruazinha apertada e parecia um bar comum, como qualquer outro. Não me atraiu. Passou um tempo e se mudaram para outro local, mas também não era bom. Foi na sede maior que conheci o pessoal. Era um salão que cabia mais ou menos umas 160 pessoas", recorda.

Ele relutou por alguns meses até dar o braço a torcer para a curiosidade. Escolheu um dia em que exibiriam um filme brasileiro. A ideia era trazer do cinema o tema para a apresentação musical da noite. "A primeira vez em que fui lá um grupo de forró tocou. Como costumava andar de terninho, naquela época, estava usando gravata. Me barraram na entrada, por que o clima do lugar era bem descontraído;, conta rindo da exigência boba que impediu funcionários da embaixada de entrarem. ;Eles não quiseram tirar, mas eu tirei", completa.

Carlos sempre quis dançar tanto que, na época que morou no Rio de Janeiro, fez 35 aulas (depois de ler o instigante cartaz que dizia: ;Quantas oportunidades você perdeu por não saber dançar?;). "Tinha bolero, chá chá chá, essas coisas. Como era muito tímido ficava com vergonha de tirar aquelas damas e elas não conseguirem acompanhar os passos que fazia. Não queria arriscar. Pensei que as aulas não tinham valido de nada".

Na Favela Chic, a paixão pela dança veio com toda força. Lá conheceu figuras comuns e famosas Entre elas, uma atriz pornô ; cujo nome não foi revelado. "Tinha umas mesas comunitárias enormes, com pessoas de todos os cantos. Era uma mistura". Entre uma conversa e outra, Carlos sugeriu que ela deixasse os filmes para cantar, e até compôs uma música para que ela interpretasse: "Quero me entregar a você/Amar e me fartar de prazer/Viver/Vale a pena viver/Só se for para amar você".

A temporada na França terminou em grande estilo. O bom-humor e a desenvoltura nos palcos levaram Carlos Elias para o mundo da moda. Em 2003, o artista desfilou para o estilista japonês Yohji Yamamoto, sob vários aplausos.

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Nem só de samba vive o homem
A série sobre o multi-artista Carlos Elias, no Correio Braziliense, chega ao fim hoje, porém, as histórias sobre as andanças do portelense serão registradas no livro Samba, humor e poesia, ainda sem data de lançamento. Para publicação, faltam poucos detalhes e patrocínio.

A trajetória de Carlos começa ainda criança, quando ele se muda para o Rio de Janeiro. Na capital fluminense, ele faz história da Portela, escola de samba do coração. Integrante da Ala de Compositores da azul e branca, venceu, em 1968, a disputa de samba-enredo com Rugendas ; Viagem pitoresca através do Brasil.

"Certa vez, me aborreci na agremiação. Durante o ano todo tinha por volta de 20 compositores, mas no carnaval apareciam umas 60 pessoas na ala. Eu, Paulinho da Viola e o Candeia pensamos em uma estratégia para eliminar isso. Bolamos um festival de samba de terreiro. Quem tinha qualidade entrava para a ala", conta em tom diplomático.

Mesmo tentando contornar os dissabores que o problema anunciava desde o início, o desfecho do episódio veio com uma briga. "Tinha um sujeito que queria entrar de qualquer jeito. Houve uma discussão. Estava usando uma camisa bacana que foi bolada especialmente para a nossa ala. Tirei e joguei no chão. Sou um cara tranquilo, mas fiquei com muita raiva", lembra.

Coincidência ou não, na época, Carlos Elias havia escrito Protesto de sambista, um samba sobre o desgosto que sentia com a direção da escola. "Seu presidente por favor não leve a mal/ Mas não pretendo sair com a escola este carnaval/ A minha ala anda muito descontente e decadente/ E ninguém está dando bola", dizia a letra da canção. Ficou sem frequentar a quadra da Portela por alguns anos. Recentemente, ele voltou a desfilar na escola.

O então funcionário do Itamaraty foi transferido do Rio para Brasília, em 1977. Depois de morar no exterior, Carlos voltou para a capital federal em 2003, de onde não saiu mais. "No Clube do Choro conheci Leandro Borges. Ele queria me emprestar uma homenagem e decidiu gravar o documentário De bem com a vida ; Carlos Elias e o samba em Brasília, como trabalho final da faculdade. O filme ganhou nota máxima pelos professores", recorda.

De bem com a vida também foi exibido na 43; edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2011. "Na época, o Cine Brasília não tinha projetor digital, e o filme só foi exibido na Sala Martins Pena e no Centro Cultural Banco do Brasil. No dia da premiação, só eu e o Leandro fomos para a cerimônia. Quando anunciaram o vencedor do prêmio Marco Antônio Guimarães (conferido ao título que melhor utiliza material de pesquisa cinematográfica brasileira) não sabíamos como reagir. No palco, foi uma rasgação de seda: um elogiando o outro".

Além do livro, a produção de uma trilogia de curtas-metragens ; baseados em músicas próprias e de Nelson Cavaquinho ; está nos planos de Carlos, que chegou a fazer um curso de roteirista com o cineasta Sérgio Moriconi.

Se encontrar Carlos Elias pelas rodas de samba da cidade, faça uma reverência. Não que combine com a humildade e simplicidade que carrega o corpo enfraquecido pela idade, mas é o cumprimento a altura do seu legado para a história de um dos ritmos mais populares do país. Nas letras singelas, mostrou o seu amor pela música. Já com os passos alternados ora pela cadência da bateria ou pela caminhada da vida ganhou respeito de todos.

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