O primeiro parágrafo de Um erro emocional é uma confissão de 16 linhas. O narrador penetra na cabeça da personagem Beatriz para revelar como ela contaria às amigas o suposto erro cometido por Paulo Donetti, escritor pelo qual foi contratada como assistente. ;Cometi um erro emocional;, imagina a moça, antes de chegar ao problemático ;me apaixonei por você;. Entre a afirmação e a constatação, os pensamentos fluem numa densidade reveladora da personalidade de Beatriz e, sobretudo, da postura do narrador. Cristovão Tezza não imaginava que seria tão radical quando começou a esboçar a história em forma de conto. Na primeira versão, explicava o erro de forma direta. O fluxo de consciência inserido entre um e outro forneceu o caminho para o escritor curitibano conceber o mais radical de seus narradores. O conto virou romance.
Um erro emocional, 14; romance de Tezza, é a história de dois personagens que muito pensam e pouco conversam. Ele, um escritor desorganizado, mergulhado no perigo de parir um romance com cara de tese. Ela, uma jovem e deslumbrada assistente, envolvida no jogo de afeto silencioso desenhado em gestos, olhares e movimentos que nunca chegam a ser explícitos. O enredo de Um erro emocional, que Tezza lança neste sábado (20/11) com sessão de autógrafos na Livraria Cultura do CasaPark, está mais na cabeça dos personagens do que na ação.
Beatriz e Donetti quase não se comunicam, de tão encerrados em seus fluxos mentais pautados por memórias, reflexões e constante análise mútua. ;Tem muito a ver com minha maneira de enxergar o mundo. A solidão é o grande tema de tudo que escrevo. E acho que esse livro é um exercício de solidão a dois, porque eles conversam pouco, são poucos os pontos de contato e são duas vidas muito machucadas, tanto ele quanto ela têm uma fragilidade;, explica o autor.
Um erro emocional também é um passo em direção à radicalidade. Tezza admite ter construído no romance seu narrador mais extremo, bem diferente daquele que conduz a narrativa de O filho eterno, que no ano passado venceu sete prêmios de literatura, incluindo o Portugal Telecom e o Jabuti. ;O filho eterno me preparou para escrever esse romance com relação ao vaivém do personagem, mas em Um erro emocional eu radicalizei esse recurso. O narrador é onisciente, mas (fala de) uma cabeça de cada vez, de modo que uma não tem acesso à outra. São duas biografias que mal se tocam, eles vão se lembrando e há uma situação sutil de aproximação amorosa.;
Síntese do escritor
Se o narrador de O filho eterno é a própria consciência do personagem que precisa lidar com um filho portador da síndrome de Down no mais autobiográfico dos romances do escritor curitibano, Um erro emocional traz um Donetti cujos contornos lembram Frankenstein. Há um pouco de todas as características de um escritor no personagem. ;É uma espécie de síntese do escritor brasileiro contemporâneo;, revela. ;E uma maneira de pensar o momento contemporâneo, tem uma espécie de realismo reflexivo sobre momentos do Brasil.;
Relações raciais, afetivas e familiares estão por toda a narrativa. Donetti é mulato, detalhe simbólico na concepção de Tezza, que lembra a condição racial de Machado de Assis. O mau humor acompanha o personagem e aí o autor aproveita para tratar de crítica. Donetti se sente um perseguido, maltratado e incompreendido. ;Ele tem uma série de coisas que você vê isoladamente em diferentes em escritores brasileiros, inclusive em mim mesmo.;
Além dos autógrafos, Tezza participa neste sábado do seminário Panorama da literatura brasileira contemporânea, série de encontros com autores em aulas de literatura realizadas pela escola A Casa e que conta com a participação do romancista Marçal Aquino, no próximo dia 27, e do pesquisador Sérgio de Sá, professor da Universidade de Brasília (UnB).
SERVIÇO
Um erro emocional
De Cristovão Tezza. Record, 192 páginas. R$ 34,90. Lançamento neste sábado (20/11), às 18h, na Livraria Cultura do CasaPark
Panorama da literatura brasileira contemporânea
Neste sábado, às 15h, no Studio Casa Park (Shopping CasaPark, segundo andar). R$ 300
Confira trecho de Um erro emocional, de Cristovão Tezza
"Cometi um erro emocional, Beatriz se imaginou contando à amiga dois dias depois ; foi o que ele disse assim que abri a porta, o tom de voz neutro, alguém que parecia falar de uma avaliação da Bolsa, avançando sem me olhar como se já conhecesse o apartamento, dando dois, três, quatro passos até a pequena mesa adiante em que esbarrou por acaso, depositando ali o vinho com a mão direita e a pasta de textos com a esquerda (e ela se viu desarmada no meio de três sinais contraditórios, o erro, o vinho, o texto, mais a espécie de invasão de alguém que está à vontade ; o que ela havia sonhado, Beatriz teria de confessar à amiga, e ambas achariam graça da ideia ; à vontade, mas não do modo correto) e Beatriz fechou a porta devagar com um sorriso de quem se vê imersa na ironia, e isso é bom; e se virou para escutar o resto, agora vendo-o com as mãos livres, a silhueta conta a luz, os braços brevemente desamparados daquele homem magro:
; Eu me apaixonei por você."