postado em 30/11/2010 08:07
Em Brasília desde os 17 anos, o pesquisador Mário Lisboa Theodoro, diretor de cooperação e desenvolvimento do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados (Ipea), mora no Lago Norte com a mulher e dois filhos. Apesar de viver numa região administrativa que tem 80% de moradores brancos, 11% pardos e 1% pretos, Theodoro, negro nascido em Volta Redonda (RJ), nunca sentiu o preconceito. ;Talvez porque as casas dão para o quintal, não dão pra rua. Então quase ninguém se conhece;. O que impressiona o pesquisador é a Escola-Classe do Lago Norte, criada para acolher os filhos dos moradores, mas que abriga filhos de caseiros, de jardineiros, de empregadas domésticas e crianças da vizinha Varjão. ;É um nicho de crianças negras no meio do Lago Norte. Os moradores têm um verdadeiro preconceito com aquelas crianças. Têm medo de serem roubados. Aquela escola é a cara do preconceito brasileiro.;Economista estudioso da questão racial, ativista dos movimentos negros, Mário Theodoro é o organizador do livro As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil, 120 anos após a abolição, edição do próprio Ipea. Na 12; e última parte da série Negra Brasília, o pesquisador trata da grande ferida que é questão racial no Brasil, do razoável avanço das políticas públicas, dos limites da abolição e do papel do movimento negro nesse momento. E diz: ;O Brasil quer mesmo é ser louro;, para explicar as razões pelas quais há um consenso entre ativistas e pesquisadores de que negro é a soma de preto mais pardo.
Um grande marco
Houve um grande avanço nos últimos 10 anos. Houve avanço no tratamento da questão racial e talvez o grande marco seja a criação da Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial]. Ainda que a atuação política da Seppir seja residual, pequena, pontual, ainda que ela não dê conta da questão racial no Brasil, a criação dela foi o reconhecimento pelo Estado de que a questão racial tem que ser objeto de políticas públicas. Foi esse o grande avanço, por maiores que sejam as críticas. A partir daí, temos que começar a construir.
Revivendo a questão racial
A partir das cotas [raciais nas universidades] começou a surgir uma polêmica nacional. E isso é o mais importante. A questão racial virou uma questão nacional. Todo segmento importante da sociedade sentiu necessidade de se posicionar. O Brasil só debateu verdadeiramente a questão racial entre os anos 1850/1888, e de lá pra cá o tema sumiu das discussões nacionais. As cotas fizeram reviver a questão racial. As pessoas estão indo aos tribunais para dizer que não ou que sim. Esse debate está nos fazendo encarar a questão racial como um problema brasileiro. O silêncio é o pior dos mundos, porque no silêncio é como se o problema não existisse. Agora, teremos que dar respostas a essas questões, formular políticas públicas maiores.
O racismo como ideologia
A abolição não resolveu o problema racial. Ela libertou os negros e nada mais. A abolição jogou no limbo a força de trabalho brasileira, os ex-escravos. E vieram os migrantes para ocupar os novos postos de trabalho. O mito da democracia racial nasceu depois da abolição e o próprio racismo só foi se instalar no Brasil como ideologia dominante depois da abolição. É curioso isso, mas todo pensamento racista surgiu como se fosse uma forma de justificar diferenças e desigualdades a partir da naturalização. Parecia ;natural; que os negros continuassem onde estavam, porque eles sempre estiveram nesse lugar. Desde a abolição se instalou o silêncio sobre a questão racial e quem ousasse falar dela era tratado como um caso de polícia. Como foi o caso da frente negra dos anos 30, que foi perseguida e dizimada. Ou de Abdias Nascimento, com o teatro experimental do negro. E lá vinha o discurso de sempre: ;Você está querendo dividir, que horror! Vocês estão imitando os Estados Unidos;. Como se fosse uma luta que não tivesse legitimidade. As mulheres podem queimar sutiã, bacana; os sem-terra podem pedir a reforma agrária; mas os negros, do que eles estão reclamando?
O negro não é um igual
Depois da Segunda Guerra Mundial, a reconstrução social europeia foi no sentido de retirar seus iguais de uma situação de penúria. Mas o brasileiro branco não vê o outro brasileiro negro como igual e não se incomoda se determinado grupo passa por privações. Ele não é meu igual;Não existe um apelo moral para a inclusão. São dois grupos, um com direito a tudo e outro naturalmente com direito a nada. É como se fosse natural que os negros sejam pobres.
Chaga aberta
O racismo é uma chaga aberta no dia a dia. A pessoa que sofre racismo, ela sente a ofensa não somente nela mesma. Se eu sou um negro sujo, minha mãe é negra suja, minha avó é negra suja. Então é uma chaga inominável e essa chaga está no cotidiano, só que está velada, mas ela existe o tempo todo. Antônio Candido disse, recentemente, que o racismo diminui os dois lados, diminui quem sofre a ofensa porque a pessoa é diminuída diretamente e diminui quem o pratica, porque demonstra que é incapaz de ver a alteridade, é uma pessoa que estreita o mundo. O Brasil criou gerações de racistas. E continuamos a fazer isso com nossas crianças. Porque ninguém nasce racista. As crianças pequenas se abraçam, se beijam, mas à medida que o tempo vai passando ela vai aprendendo a ser racista.
Negro, principal interlocutor
É a primeira vez que o movimento negro é o principal interlocutor da questão racial. Nos debates abolicionistas, havia os intelectuais urbanos do Rio de Janeiro, o pessoal de São Paulo, cada um tinha uma ideia, mas os negros eram minoria na discussão. Agora o movimento negro entra como interlocutor prioritário.
Pretos pardos = negros
Negros e mulatos têm um sofrimento racial muito parecido, embora os negros sofram um pouco mais. Mas qualquer mulato que ouse sair da sua posição social sentirá que a questão racial fala mais alto. Alguém até pode dizer que é moreninho, mas a polícia vai vê-lo como negro. Um mulato pode até dizer que não é negro, mas na hora H, numa briga com um branco, ele vai ser chamado de crioulo. Juntar pretos e pardos numa só classificação, a de negros, é uma escolha política, sem dúvida. É um modo de dizer que estamos todos juntos, que sofremos o racismo juntos, que temos um problema a enfrentar juntos e que vamos enfrentá-lo juntos. Porque, ao final, o Brasil quer mesmo é ser louro. Ele não quer ser moreninho, ele não quer ser pardo. E se o ideal é ser louro, então mulatos e negros estamos juntos. O fato de ser mulato não leva alguém para a tevê. Nas novelas, quem tem alma são os louros de olhos azuis. Tudo isso faz com que o movimento negro chame todo mundo [pretos e pardos].
Professor, crítico literário, é um dos maiores intelectuais brasileiros do século 20
Professor, crítico literário, é um dos maiores intelectuais brasileiros do século 20
PARA LER
As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição ; Organização de Mário Theodoro, edição Ipea. Textos de Luciana Jaccoud, Rafael Guerreiro Osório e Sergei Soares que analisam a relação entre a questão racial, como se deu a passagem da escravidão para o trabalho livre e a precariedade do atual mercado de trabalho.
JOAQUIM NABUCO
1849/1910
Se a abolição se fez entre nós sem indenização, a responsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas ao partido da resistência [ao abolicionismo]. O meu projeto primitivo, de 1880, era abolição para 1890 com indenização
Minha formação, Editora UnB, 1981, página 91