A sala de 72m; localizada no árido Setor de Indústrias e Abastecimento (SIA) de Brasília guarda um acervo sobre a história econômica dos escravos no século 19. Envoltos em papéis e plásticos e empilhados em 13 estantes com cinco prateleiras cada uma, livros de registros de contas-correntes e cadernetas de poupanças revelam detalhes que, a partir de agora, ampliam os estudos sobre a construção social de um país que apenas chegou à abolição por lei em 1888, 127 anos depois de Portugal ter definido tal medida.
Em fevereiro de 1878, nascida no Maranhão, Antônia, escrava de Alexandre Bernardo de Siqueira, fez o primeiro depósito de 50 mil réis na conta-corrente número 1.039, na Caixa Econômica Federal ; à época chamada de Caixa Econômica da Corte. Em junho daquele ano, a partir de mais três depósitos de 10 mil réis, mais os juros que lhe renderam 1,1 réis, Antônia somava 81,1 mil réis. Sem realizar nenhum saque, ao fim daquele ano, a cozinheira, solteira, de 32 anos, tinha acumulado 133,8 mil réis. A conta permaneceu rendendo por mais dois anos. O que Antônia fez com o dinheiro é uma das perguntas que têm intrigado especialistas que se debruçam sobre os arquivos acondicionados nos arquivos da Caixa Econômica, no SIA.
O raciocínio imediato levava a crer que, exatamente uma década antes da Lei Áurea, Antônia estivesse economizando para comprar a própria alforria, assim como demonstrado em diversos estudos. Entretanto, os dados reunidos no acervo podem ampliar a análise do escravo como alguém que aceitava passivamente a condição que lhe era imposta, muitas vezes, com brutal violência. É possível enxerar como uma pessoa que, apesar de tratada como propriedade, pensava no futuro, tinha planos e investia visando esses objetivos.
Assim como a cozinheira no Maranhão, o acervo da Caixa conta parte da história econômica de centenas de escravos espalhados pelo país: Rio, Bahia, São Paulo, Pará, Goiás, Mato Grosso entre outros. Alguns não estão identificados como escravos, mas historiadores os percebem como tal por causa da ausência de sobrenome nas fichas. Há, inclusive, contas abertas em nome de índios escravos, que se denominavam ;administrados;, porque a prática era proibida e precisava ser disfarçada.
De acordo com o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Thiago Alvarenga, em termos de microdados, não se tem conhecimento de um acervo tão completo no continente americano. ;Estudos sobre poupança existem vários, mas não com tantos dados agregados e amplos. Esses permitem que a gente entenda quem eram essas pessoas. Tem escravos, menores de idade, órfãos, mulheres, viúvas. Um perfil de gente muito pobre investindo. O que é mais interessante é trabalhar com a história desses clientes;, diz.
Alvarenga explica que grande parte dos escravos que conseguiam alguma renda era os ;de ganho;, ligados às áreas urbanas e não às lavouras. ;O senhor liberava o escravo para trabalhar em qualquer serviço na cidade e estipulava um valor a ser pago a ele. O que ele ganhasse a mais podia usar para ter uma casa, constituir família e até poupar. Isso não diminui a relação cruel de propriedade, mas esses tinham mais oportunidades do que os que estavam nas lavouras;, conta. ;Também havia os escravos domésticos, que tinham uma brecha maior para ganhar dinheiro. Cozinheiras podiam vender quitutes, costureiras, vender roupas para fora.;
O doutor em história e especialista no período da escravidão Carlos Eduardo Valencia comenta que, desde o século 16, os negros encontravam mecanismos de poupança, em todos os contextos, por exemplo, com o armazenamento de mercadorias. ;Tinham uma economia própria, recursos, um sistema único;, explica. O pesquisador conta que, até a aprovação da Lei do Ventre Livre, que lhes deu direito ao pecúlio, em 1871, não existia legislação dizendo se era permitido ou não. ;Então, era uma economia por costume, o que acabava criando conflito com os senhores, que, às vezes, entendiam que, pelo escravo ser propriedade dele, o dinheiro também seria. Muitas brigas assim foram parar na Justiça;, conta.
Valencia, que também é professor na UFF, explica a importância dos arquivos da Caixa, no SIA: enxergar os detalhes, ver quando o escravo depositava, quanto, com que frequência, quando sacava, encerrava a conta. ;Cada folha daquelas tem a história financeira da pessoa, do banco e, consequentemente, do Estado. Desde o século 19, esses investimentos populares, que fazem o dinheiro do pobre girar, financiam o Estado. As instituições precisam entender essa dinâmica, essa história econômica, na qual todas as parcelas da população participam do sustento do Estado.;
Apesar de pesquisadores acreditarem que a compra da liberdade não era sempre o objetivo principal ; até porque há saldos de poupança maiores do que os valores de alforria ; parte desse dinheiro foi usada para isso, principalmente, entre mulheres. Estudos demonstram que entre 60% e 70% dos escravos alforriados eram do sexo feminino. Quando a mulher se tornava livre, os filhos nasciam livres e esse era um dos caminhos para mudar a vida de toda a família. Eram três os tipos de alforria: a paga pelo escravo; a dada pelo senhor, normalmente, no leito de morte; e a por tempo adicional de serviço, quando o escravo teria a liberdade desde que cumprisse mais um período de trabalho.
Liberdade
No caso daqueles que sonhavam em comprar a própria liberdade, pesquisas indicam que, em média, um negro tinha de trabalhar sete anos para conseguir juntar o valor cobrado, que somava, aproximadamente, 1 conto de réis ; 1 milhão de réis. ;Não tinha um valor fixo, mas sempre o preço da liberdade era maior do que o preço do próprio escravo. A quantia era definida no momento da negociação e o escravo pagava depois. Há registros, inclusive, de escravos que pagaram a alforria de forma parcelada. Por exemplo, se pagasse 50%, ele passava a ser 50% escravo, diminuindo as horas de trabalho pela metade também;, conta Valencia.
O arquivo da Caixa, a partir de agora, deve ser digitalizado pela equipe do professor de história Tiago Luís Gil, da Universidade de Brasília (UnB). ;O arquivo está aberto para a comunidade, sabemos da importância de contar a história econômica e social do país a partir do nosso acervo;, afirma Marcelo dos Santos, gerente em exercício de marketing cultural da Caixa.
Um longo caminho
Por mais de três séculos, o Brasil importou escravos africanos. Os primeiros registros de navios negreiros datam de 1545 e vão até 1860. Estima-se que mais de 10 milhões de africanos foram trazidos às Américas no período, principalmente, para a região do Caribe e o Brasil. Um estudo de pesquisadores norte-americanos publicado na Revista Slate, em 2015, mostra 20.528 viagens de navios negreiros saindo da África para diversos países durante os 315 anos. A maioria deles chegava pelo Rio de Janeiro, Santos (SP), Salvador, Pernambuco e Pará. A partir do século 19, com a proibição da escravatura em diversos países do mundo, o Brasil passou a ser pressionado à abolição. Confira os marcos da história da escravidão no país:
1559
; Os portugueses permitem a escravidão no país. Cada senhor de engenho tem a liberação para importar até 120 negros.
1695
; Na segunda metade do século 17, a formação do Quilombo dos Palmares, na Capitania de Pernambuco, marcou a luta dos escravos para serem donos das próprias vidas. Depois de muitos conflitos, o quilombo foi destruído e o principal líder, Zumbi, decapitado.
1761
; Marquês de Pombal, em Portugal, define por lei a abolição da escravatura, entretanto, só em 1854 os primeiros escravos foram libertos.
1810
; O tráfico negreiro é declarado ilegal na Inglaterra.
1831
; O Brasil aprova a Lei Feijó, que proíbe o tráfico negreiro, mas ela não era cumprida.
1850
; A Lei Eusébio de Queirós reforça a Lei Feijó e o tráfico transatlântico de escravos deixa de existir no país.
1871
; A Lei do Ventre Livre é aprovada e concede liberdade aos filhos de escravos a partir dos 8 anos. Além disso, os escravos passam a ter alguns direitos, entre eles, de pecúlio (guardar dinheiro)
1885
; A Lei dos Sexagenários é aprovada e escravos com mais de 65 anos passam a ter o direito à liberdade.
1888
A princesa Isabel assina a Lei Áurea, aprovada pelo Parlamento, e abole a escravidão no Brasil.
Estratégias para a vida
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFF), Tiago Luís Gil acredita que os arquivos de escravos com poupança na Caixa Econômica Federal têm potencial para mudar a visão passiva que o país sempre teve da escravidão. De acordo com ele, que é professor da Universidade de Brasília (UnB), apesar de ser tratado como inferior, o negro tinha capacidade de fazer algo inimaginável até para os pobres livres. ;Para o século 19, supunha-se que era difícil para qualquer pessoa poupar em um banco, se imaginava que o sistema bancário era superelitista, quando, na verdade, estamos encontrando dados que o consumo dos bancos era muito grande e mesmo os escravos utilizavam os bancos;, diz.
Gil coordena a equipe de estudantes voluntários que estão higienizando e catalogando o material do banco. Segundo o professor, ainda será necessário uma análise mais aprofundada dos dados disponíveis para entender o que os escravos faziam com esse dinheiro investido. ;Poderia ser para alforria própria, mas faziam outras coisas também que não só alforria. É claro que a liberdade era uma coisa desejada, mas não era a única coisa desejada;, acredita.
Qual é a importância, do ponto de vista de pesquisas sobre escravos, que essa documentação apresenta?
Ela mostra um lado pouco conhecido que supunha existente, mas que não foi devidamente estudado, que é a do escravo poupador ou, melhor dizendo, do escravo investidor, que faz estratégias, planeja a vida e organiza o dinheiro de uma forma bastante eficiente. Alguém pode perguntar de onde é que os escravos tiram o dinheiro. Isso era muito comum nas grandes cidades do Brasil no século 19, onde os escravos tinham a oportunidade de fazer trabalhos fora da propriedade do senhor e obter alguma renda ; era o ;escravo de ganho;. Eles tinham a capacidade de fazer serviços para o senhor, que contratava o trabalho deles para outra pessoa, ou vendiam coisas e assim obtinham parte do lucro. Essa parte era acumulada e, agora, a gente está vendo ela sendo colocada no banco. Essa documentação é extraordinária, porque mostra o movimento, consumo do banco por parte do escravo, que significa que um dia ele vai lá, deposita, outro dia vai lá e saca, um planejamento econômico muito interessante para se observar.
Essa poupança está relacionada à compra da própria alforria? Essa relação pode ser interpretada como mais uma perversão do Estado brasileiro em relação à
manutenção da cultura escravocrata?
Não há dúvida de que o mundo do escravismo é perverso, duro, muito difícil para o escravo, mais do que para qualquer outro. Mas a questão interessante aqui é que o escravo, mesmo neste mundo devastador, em um ambiente completamente desfavorável, onde ele é propriedade de alguém, considerado inferior, é capaz de fazer estratégias e cuidar da vida. Isso dá humanidade ao escravo. É certo que ele é tratado como coisa, mas ele consegue estabelecer estratégias e cuidar da vida da melhor maneira possível. E ele tem a capacidade de fazer coisas que a gente supunha difíceis e escassas mesmo para os livres pobres. Para o século 19, supunha-se que era difícil para qualquer pessoa poupar em um banco, se imaginava que o sistema bancário era superelitista, quando, na verdade, estamos encontrando dados que o consumo dos bancos era muito grande e mesmo os escravos utilizavam os bancos. A Caixa é mais um exemplo, não é o único.
Os brasileiros foram de fato os maiores traficantes de escravos?
O Brasil foi o país que mais importou escravos na história da humanidade. Os maiores traficantes de escravos de todos os tempos foram brasileiros: baianos e cariocas. O Brasil foi, certamente, um dos países onde mais durou a escravidão. Ela já existe no século 16, aumentou no 17, aumentou muito no 18 e aumentou absurdamente no século 19. Quando a gente espera que ela está chegando ao fim, é, na verdade, a época que ela mais tem força. Até 1830, chegavam milhares de escravos por ano. A partir daí passou-se a ter um valor muito mais alto. A curva de escravos cresce em 1830, porque seria o ano que se supunha que acabaria o tráfico. Ele foi proibido. Só que, mesmo com a lei, os traficantes continuram e aumentaram muito a proporção de escravos. A gente tinha feito um acordo para acabar com o tráfico, mas não acabou. Em 1850, a Inglaterra começou a policiar os mares e a abater os navios com escravos. Não era algo humanitário. Se fosse, eles abordariam os navios e salvariam os escravos, mas botavam para afundar com todo mundo dentro.
Onde se concentrava a maioria dos escravos no Brasil?
Rio de Janeiro e Salvador, por exemplo, que eram duas cidades muito grandes para a época. Elas tinham uma população que se renovava e aumentava muito. O Rio, por exemplo, devia ter 500 mil habitantes, enquanto São Paulo, 25 mil, para se ter uma ideia. São Paulo era uma cidade pequena. O Rio tinha muito mais escravos e, cada vez, chegava mais. Nós vamos encontrar, nas ruas do Rio, no século 19, dezenas de línguas africanas faladas diariamente. Era normal que os escravos falassem a sua língua e muitas línguas eram faladas ao mesmo tempo, era multicultural. E a população era muito grande, demandou serviços bancários muito complexos. Esses registros são um controle bastante interessante que não se conhecia muito bem.
Essas poupanças eram feitas basicamente por ;escravos de ganho;?
Supõe-se que sejam ;escravos de ganho; porque eles estariam mais próximos de ter uma renda que virasse poupança.
E não necessariamente para a alforria?
Poderia ser para alforria própria. Há relatos de escravos que, antes de se alforriar, alforriavam alguém querido, uma namorada, um filho, a mãe, pode ser muita gente. Tem muitos relatos, dos mais diversos. É precoce dizer o que eles faziam com o dinheiro, mas faziam outras coisas também que não só alforria. A gente supõe que eles faziam outras coisas porque teriam interesses diversos, planos. É claro que a liberdade era uma coisa desejada, mas não era a única coisa desejada.
É possível que o Estado brasileiro tenha se apropriado do dinheiro de escravos?
É, mas não vai ser uma história nova. É uma coisa que a gente conhece bem, há muito tempo, mas eu não saberia dizer. Se aconteceu, foi de forma tradicional como poderia fazer com qualquer pessoa que morresse e não tivesse herdeiros ou coisa assim. Mas duvido que um banco, não por caridade ou honestidade, passasse a perna em um escravo. Poderia até passar, mas, se você é um escravo, o banco passa a perna em você e você comenta com as pessoas. Você não acha que os outros escravos vão no mesmo momento sacar o dinheiro deles? Isso pode significar até a quebra do banco, porque os dados encontrados no Rio de Janeiro mostram que os pequenos poupadores, entre eles, muitos escravos, representavam um percentual importante do movimento do banco. Se ao mesmo tempo todos sacam, a desconfiança pode significar quebra. Eu não mexeria com os escravos se fosse o dono do banco.