
O Brasil nunca esteve tão preparado para quebrar o gelo e derreter a neve dos Jogos Olímpicos de Inverno como agora. A seis meses da abertura de Milão-Cortina-2026, o clima é de otimismo nos bastidores, especialmente nos corredores da Confederação Brasileira de Desportos na Neve (CBDN), em São Paulo. Uma das influências é a medalha inédita conquistada por Zion Bethonico, do snowboard cross, na edição da Juventude Gangwon-2024, a primeira do país em uma versão gelada da Olimpíada. Outro fator animador é a importação de talentos de alto quilate, que escolheram defender a bandeira verde-amarela.
Quem diz é Thatiana Freire, gerente de esporte da CBDN. Ao Correio, a gestora destaca os preparativos para as modalidades de neve a 182 dias do início do espetáculo. Com cinco vagas obtidas — duas no ski cross country feminino e uma no masculino; uma no ski alpino masculino e outra no feminino —, ela detalha a antecedência para uma missão em Jogos em termos logísticos, revela preocupação com a tensão política entre EUA e Brasil e manda um recado para quem acha que modalidades de inverno não são coisas do Brasil: "Ampliarmos o olhar das fronteiras geográficas". A seguir, confira esses e outros tópicos.
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Na quarta-feira, entramos na contagem regressiva de seis meses para os Jogos de Inverno Milão-Cortina. Como está a preparação da CBDN?
"A gente está em contato bastante próximo com o COB, pensando na questão mais logística e operacional, nos preparando com dados de todos os atletas e pessoas que podem participar como oficiais. Tem todo um processo rigoroso e detalhado. Estamos cuidando desse parte mais burocrática, administrativa. A questão logística também é bem desafiadora. Esses Jogos têm uma característica, pois acontecerão em diferentes lugares na região de Milão e Cortina. Cada modalidade ficará em um local diferente. Esperamos estar com uma diversidade de modalidade. Alguns ainda estão buscando a classificação. Estamos cuidando para chegarem no mais alto nível."
O que te move, pessoalmente, a trabalhar com esportes na neve em um país tropical?
"Tem uma coisa muito geral: o desenvolvimento esportivo como todo. Então, o fato de promover acesso e oportunidades para que as pessoas pratiquem modalidades, desenvolvam-se e atinjam, sejam elas quais forem, quanto maior o número de possibilidades e terem sucesso, melhor. Diferentes perfis e característica acabam se habituando a certas modalidades. É promover maior diversidade de modalidades esportivas. Isso garante mais acesso e possibilidades de resultados. Quando pensamos desenvolvimento esportivo, temos certo referenciais de padrão. Mas, quando pensamos em modalidade de neve, até como desenvolvemos em atletas que estão no Brasil, como conectamos a comunidade brasileira fora do Brasil e que tem acesso à estrutura. Tem esse desafio de, por um lado, garantir a diversidade de modalidades e, por outro, quebrar a cabeça e sair um pouco das referências mais padronizadas."
Como avalia esse fenômeno de naturalização de atletas para o Brasil?
"O Patrick Burgener (filho de brasileira e nascido na Suíça) fez a mudança de naturalidade. O Luca Merimée (natural da França), infelizmente, lesionou-se e não competiu na temporada anteriores, mas está voltando. Eu diria que é um tema bastante complexo, pois muitas vezes esbarra em alguns princípios e valores, pois o brasileiro é bastante encanado com essa questão da torcida. Para nós, das modalidades de neve, esse fenômeno é bastante importante, pois temos uma realidade de esportes que não temos a prática garantida ou facilitada aqui. Quem pratica e tem os melhores resultados estão fora, mas têm laços com o Brasil. Alguns nasceram aqui e mudaram. Outros são filhos de brasileiros."
É um fenômeno importante para ampliarmos nosso número de atletas, com mais chances de resultados, dando maior visibilidade para as modalidades de neve e impactando bastante toda a comunidade brasileira, no sentido de 'Eu posso praticar isso também'. Tem um efeito importante, no sentido de resultado e em toda a cadeia de influência que isso gera, mobilizando, sendo referência e modelo. O efeito do Lucas (Pinheiro, nascido na Noruega) é incontestável, não só pelos resultados, mas por transmissão das etapas da Copa do Mundo. Temos um alcance que antes não tínhamos, possibilidade de resultado maior e impacto.
O bronze do Zion Bethonico potencializou de alguma forma os esportes da neve do Brasil?
"Foi o primeiro resultado olímpico, por mais que fossem Jogos da Juventude. Teve um impacto de mídia e informação que circula. Começamos a dar mais entrevistas, sermos mais chamados e conhecidos por conta do resultado do Zion. Parte do recurso que recebemos do COB é definido em função de resultados, entre outras coisas. Um resultado como esse acaba trazendo mais recursos financeiros para continuarmos investindo e desenvolvendo atletas."
O fato de termos que manter atletas durante todo o ano fora do Brasil e os custos, sobretudo com o câmbio em dólar e euro, estão entre os maiores desafios?
"Eu diria que sim, porque até para explicarmos aos atletas de forma transparente quando fazemos o planejamento conjunto da temporada. Os nossos recursos são reais, mas os gastos são em dólar e em euro. Tem a variação cambial, mas temos um volume considerável de taxas, impostos e contribuições vinculadas aos serviços contratados, remessas internacionais que fazemos. É um quebra-cabeça que temos de fazer para dar conta de tudo. Nessa tentativa de manter a transparência e usar o recurso com a maior eficiência, as equipes têm dificuldade no entendimento da legislação."
Teme que a tensão entre EUA e Brasil afete os atletas?
"Os que estão com base lá, têm vistos ou segundo passaporte. Esperamos que isso não impacte muito, mas estamos muito preocupados, temos muitas competições nos EUA, etapas de Copa do Mundo, eventos que são classificatórios para os Jogos Olímpicos. Temos algum temor, mas certa tranquilidade, porque eles têm o direito adquirido de estarem lá competindo. Uma das preocupações é porque também buscamos estar próximos desses atletas, sobretudo nesta temporada olímpica, de acompanhar de perto as competições. Vamos ver o que nos espera."
E a questão climática?
"Essa é uma preocupação das Confederações e Federações Internacionais. É um efeito brutal. Tivemos um camping de desenvolvimento na Argentina, que não foi possível de fazer porque a neve foi embora. Era um período esperado para ter neve e tiveram de fazer uma série de adaptações. As de gelo, menos, devido às características das pistas, espaços mais artificiais. As modalidades de neve são mais naturais, apesar da possibilidade de fabricação de neve. Imagino como o Comitê Organizador está cabelo em pé para garantir a produção de neve, caso não haja de forma natural."
É possível uma criança sonhar em competir no gelo ou na neve?
"Com certeza. Temos o rollerski esqui, com profissionais que conduzem treinamentos, com circuito em São Paulo, com festivais. Em julho, tivemos um festival com crianças até 12 anos. É possível e, com o passar do tempo, com essas crianças se desenvolvendo e se interessando, é possível fazer a transição para a neve. Temos ótimos exemplos. A maior parte dos nossos atletas do cross country que começaram no Brasil, como a Duda, com vaga garantida na segunda edição de Jogos Olímpicos. Não é fácil, como em outras modalidades."
O público pode pensar que os esportes no gelo e na neve sejam as mesmas coisas, mas não é. Como é a relação da CBDN com a CBDG?
"Temos participados de eventos em conjunto e pensando em como trabalhar de forma mais próxima, porque apesar de os Jogos Olímpicos gerarem a proximidade, também aumenta a preocupação de cada Confederação. Eu diria que temos bastante a avançar nessa cooperação, mas temos uma relação bastante amistosa. As sedes das duas ficam em São Paulo, o que ajuda bastante a pensar em eventos."
O que você diria para o brasileiro que ainda acha que esportes de neve não são "coisa do nosso país"?
"Eu diria para ampliarmos olhar das fronteiras geográficas. Mostrar nossa potencial nessas modalidades diferentes, digamos assim, é mais uma chance de mostrarmos nossa cultura e diversidade, é oportunidade para sermos reconhecidos. É entender que podemos desbravar novos contextos mundo afora"
Milão-Cortina pode marcar um novo capítulo para o Brasil nos esportes de inverno?
"Sem dúvida. A expectativa é altíssima, mesmo. Desde a primeira edição que participamos, em 1992, vêm mais atletas, mais modalidades e resultados melhores. De fato, Milão-Cortina representa todo um trabalho de anos, com expectativa gigante de bater recorde no número de participantes, diversidade de modalidades e, sem dúvida, resultados."
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