Ailim Cabral
postado em 03/09/2017 08:00
Dougie, plié, salto, stanky leg, flexão, tendu, helicóptero, jeté, corrida e frappé. Os movimentos são executados diariamente, até a exaustão, por dançarinos brasilienses. Variados e heterogêneos em estilo, idade e condição social, os grupos de dança da cidade são iguais na abundância de talento e na busca incansável por um palco para chamarem de seu.
E todo o esforço tem dado frutos. Em março, três jovens da cidade estiveram no campeonato mundial de hip-hop Juste Debout, realizado em Paris, na França. O evento tem cerca de 4 mil competidores e um público que ultrapassa 40 mil espectadores. Em agosto, a companhia brasiliense Have Dreams esteve em Phoenix, no Arizona, Estados Unidos, no World Hip Hop Dance Championship.
Esses são apenas alguns exemplos do talento candango rompendo barreiras e buscando o reconhecimento que afirmam não encontrar na própria cidade. Outros tantos encontram destaques em companhias ao redor do mundo e abrem as asas, nunca voltando para a cidade. Alguns retornam para compartilhar tudo que adquiriram com quem também sonha em viver da dança.
Grandes damas da dança de Brasília, Norma Lillia, Gisele Santoro e Rosa Coimbra são taxativas: a cidade tem muito talento e muito a oferecer, o que falta é um palco, de forma figurada e literal. Elas criticam a situação atual do Teatro Nacional e clamam por valorização aos novos talentos. Diferentes em figurinos, músicas e movimentos, as companhias de balé clássico, dança contemporânea e dança de rua da cidade concordam que têm muito a oferecer, porém sentem que não têm como nem a quem oferecer.
Não à toa, é grande a expectativa da comunidade artística para a inauguração do Centro de Dança do Distrito Federal, que, segundo a Secretaria de Cultura do DF, abrirá as portas ainda este ano. O espaço, na via N2, é um espaço público destinado a oficinas, ensaios, workshops, cursos e atividades da arte em geral. Com cinco salas, será destinado exclusivamente para a dança.
A representante da Subsecretaria de Políticas de Desenvolvimento e Promoção Cultural, Lívia Frazão, acrescenta ainda que, no fim de agosto, o secretário de Cultura assinou uma portaria dedicada à promoção, à divulgação e à qualificação da dança. A iniciativa, aliada à abertura do centro, é uma forma de suprir as muitas necessidades vividas pela comunidade de bailarinos.
Candangos conquistam a França
A relação entre Vitor Hamamoto, 24 anos, e a dança começou antes mesmo que ele inspirasse o ar pela primeira vez. Grávida do rapaz, a mãe, bailarina, ensaiava passos clássicos. Desde pequeno, Vitor se viu fascinado pela beleza dos movimentos fluidos. Durante a infância, poltronas de teatro, coxias e salas de academia faziam as vezes de creche. ;Essas são minhas memórias mais antigas. Minha coisa preferida no mundo era ver minha mãe dançar, mas o desejo de eu mesmo ser parte daquilo só chegou quando tinha 15 anos;, lembra.
Hoje, quase uma década depois, Vitor acaba de trazer para casa um troféu que o reconhece como um dos 10 melhores dançarinos de dança experimental do mundo. Na França, no renomado campeonato Juste Debout, ele chegou à final, na qual 10 pessoas competiram pelo título máximo.
Para ele, é curioso perceber que, apesar de toda a herança artística, foi um vídeo no YouTube que o despertou para o que hoje classifica como vocação. Assistindo a apresentações de break, Vitor começou a treinar, imitando os movimentos que via na tela. Desde então, sua trajetória não se separou mais da dança urbana.
Aos 16 anos, o dançarino decidiu que queria viver da arte que ama. A mãe chegou a ficar apreensiva por conhecer na pele as dificuldades do caminho que Vitor pretendia seguir, mas não deixou de apoiá-lo. Durante três anos, ele viveu nos Estados Unidos sempre atrás dos passos que vinham da rua. Quando voltou ao Brasil, inscreveu-se no Instituto Federal de Brasília (IFB) para estudar dança.
Foi no IFB que Vitor conheceu grupos e professores que o levaram para o mundo das companhias. ;Encontrei pessoas que me ajudaram a perceber meu caminho, a descobrir o que queria para minha vida, que é fazer a diferença na dança em Brasília. Viajando, eu conheço outras realidades e posso trazer isso para a cidade, dando oportunidade para outras pessoas e deixando de desperdiçar todo o talento que existe aqui;, afirma.
Apesar de não ser fã de competir, no ano passado, Vitor resolveu participar das seletivas do Juste Debout, que ocorreram em Sorocaba. Ficou entre os finalistas de sua categoria. ;Foi uma honra. Tive a chance de estar entre os meus ídolos e reconhecê-los como pessoas reais. Foi muito importante desmistificar. Pensei que nunca conseguiria chegar ao nível deles e percebi que, com dedicação, tudo é possível;, vibra.
Apesar da alegria, um ponto fez com que Vitor fortalecesse sua decisão de evitar competições. ;Para ganhar, a pessoa precisa impressionar jurados, e isso faz com que ela não dance para si, mas para os outros. Eu decidi que não faria isso, seria sempre eu mesmo, dançando apenas pelo prazer de dançar, para o palco.;
Estudante do IFB como Vitor, Thiago Augusto Macedo, 21 anos, também esteve no Juste Debout representando Brasília. Ele competiu em dupla, na categoria hip-hop, com o amigo Lucas Emanu. Os dois chegaram às oitavas de final.
Thiago conta que cresceu vendo os pais dançando e com a influência dos movimentos das danças de rua. Na adolescência, começou a fazer aulas, e, em 2013, envolveu-se com grupo e companhias. No ano passado, o dançarino entrou no IFB e começou a se profissionalizar. ;Foi nesse momento que comecei a entender que a dança pode, sim, ser o meu trabalho, a minha profissão. Assistindo a vídeos, eu conheci o campeonato. Ver aquelas batalhas ao vivo se tornou um sonho;, lembra.
O jovem não imaginava que, pouco tempo depois, além de poder assistir aos outros dançarinos, ele participaria do Juste Debout. Quando as seletivas foram abertas no Brasil, Thiago e Lucas Emanu se inscreveram. ;Passamos seis meses treinando cinco vezes por semana para participar como dupla. Era o nosso sonho e demos tudo o que tínhamos para fazer dar certo. Sabíamos que tínhamos potencial e ficamos em primeiro lugar nas seletivas, vencendo 42 duplas. Isso, por si só, já valeu muito;, conta.
Sobre a ida para a França, sua primeira viagem internacional, Thiago afirma não ter conseguido digerir tudo ainda. ;Foi surreal encontrar dançarinos do mundo inteiro trocando experiências e técnicas. Essa viagem me fez abrir os olhos e saber que temos muito talento no Brasil e pouca estrutura;, pondera. O jovem, assim como Vitor, sente uma grande responsabilidade com a cidade. Para ele, o objetivo atual é ajudar a mudar a realidade da dança na capital. ;Minha motivação é melhorar o que puder aqui, fazer a minha parte para que tantos talentos sejam reconhecidos e tenham a oportunidade que eu tive. Brasília é o meu lugar, e temos muito a fazer aqui.;
Atrás dos sonhos
Único grupo brasileiro na categoria megacrew (grupos de 15 a 40 pessoas) do World Hip Hop Dance Championship, a companhia de dança Have Dreams representou o país como um dos melhores grupos de hip-hop do mundo. Apesar de não terem ganhado, eles se enxergam como vencedores pela classificação e pelo fato de terem conseguido chegar a Phoenix, nos EUA, apesar de todas as dificuldades que encontraram no caminho.[VIDEO1]
Rafael Vieira Lucas, 33 anos, criador da companhia, afirma que o momento foi a realização de um sonho e uma oportunidade de crescimento e ganho de experiência. Conhecendo a rotina de outros grupos ao redor do mundo, compartilhando dificuldades, descobrindo novas técnicas e movimentos, a Have Dreams ganhou muito.
Para o dançarino, ao chegar a esse patamar e participar de eventos internacionais, a companhia cumpre o seu destino. ;Quando escolhi o nome Have Dreams, em 2010, tinha o desejo de deixar as quatro paredes, de sair de Ceilândia, do DF e do Brasil e mostrar a nossa arte para o mundo. Ir para o campeonato é a realização de tudo que vislumbrei no passado;, comemora.
Honrando as origens, a coreografia apresentada pela Have Dreams foi toda inspirada na cultura brasileira. As referências vieram dos ritmos e das danças nacionais, e a apresentação teve identidade regional, com alguns elementos do hip-hop internacional. ;Uma forma de o público também se conectar com a nossa dança;, justifica Rafael.
Para conseguir levar 28 pessoas para a competição, o grupo fez vaquinhas, buscou patrocínio, apoio e montou uma verdadeira força-tarefa para a obtenção de documentos e recursos. O desgaste por que passaram nesse processo, garante Rafael, afetou o psicológico do grupo na apresentação. ;Corremos muito atrás e, ainda assim, nem todos conseguiram ir. Isso nos abalou muito emocionalmente. Alguns grupos que estão ali se dedicam apenas a dançar, sem precisar se preocupar com outros detalhes. Sentimos na pele a falta de apoio à dança;, lamenta.
O dançarino e professor ressalta ainda o sentimento de frustração dos alunos mais novos. ;No ano passado, também fomos e eu sabia como ia ser. Mas os mais jovens sentiram muito, pois estavam muito empolgados. É triste ver que o fato de um grupo representar o Brasil em uma competição mundial não seja visto como superimportante, porque é uma vitória enorme.;
Independentemente das dificuldades, a Have Dreams pretende fazer jus ao nome e não deixar de correr atrás dos sonhos. ;Agradeço por nunca ter desistido, pois foi assim que chegamos até aqui. Consegui provar que é possível, sim, viver de dança, mas é necessário garra. Este ano, vamos começar os preparativos com antecedência e, caso sejamos selecionados de novo, teremos mais tempo para pôr a cabeça mais na coreografia e menos na burocracia;, promete Rafael.
Pioneirismo a serviço da dança
A história de Gisele Santoro, 78 anos, se mistura com a da dança na cidade. Cidadã honorária de Brasília e com mais de 60 anos de profissão, é considerada personalidade da dança também Brasil afora. Formada pela Escola de Danças Clássicas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, coreógrafa e professora, Gisele é criadora do Seminário Internacional de Dança, um dos maiores eventos da área na capital.
O seminário já exportou mais de 700 jovens bailarinos. Por meio de intercâmbio com professores e companhias internacionais, eles ganharam bolsas para estudar nas maiores escolas de dança do mundo. ;Minha ideia era usar o seminário para mostrar tudo o que podemos oferecer, todo o talento que existe aqui, pois Brasília tem bailarinos únicos. A nossa miscigenação faz com que referências culturais do país todo estejam em um lugar só, em convergência para criar talentos especiais;, afirma.
Decepcionada com o rumo que a cultura toma no país, Gisele garante que vai fazer tudo o que estiver a seu alcance para ;salvar a garotada;, dando oportunidades e visibilidade para os jovens dançarinos de Brasília. ;A minha meta é fazer com que eles cumpram seus destinos. São muitos os que se tornaram símbolos do seminário, foram vistos ali, levados para dançar fora e, hoje, oferecem aos mais novos a mesma chance que tiveram. É o caso de Davi Rodrigues, um jovem de Samambaia que recebeu bolsa para dançar na Dinamarca e hoje é diretor de uma companhia por lá;, cita.
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Assim como Gisele, Norma Lillia, 72 anos de idade e 55 de dança, tem uma história de vida que se mistura com a da cidade. Fundadora da primeira escola de balé clássico em Brasília, enxerga a dança como a mãe de todas as artes. ;Nela, estão a música, os compositores, os roteiristas, o teatro, a atuação, a física, o equilíbrio, a matemática. A dança é muito completa e rica. São necessários muitos anos e esforços para se criar uma bailarina, mesmo quando existe o talento nato.;
Norma chegou a Brasília em 1962 e se desesperou com a ausência de estrutura de dança, tornando-se uma das grandes incentivadoras da arte na cidade. Depois de começar as aulas em uma sala cedida por freiras de um colégio católico, abriu a famosa academia na 108 Sul. ;Na época, muitos talentos precisaram sair da cidade para alcançar sucesso e é uma pena ver que pouco mudou nesse sentido. Estamos cheios de bons dançarinos e sem chance de crescer. Não temos teatro nem corpo de baile, e sofremos com essa situação.;
Norma aguarda pela inauguração do Centro de Dança, mas se questiona se um dia verá o Teatro Nacional aberto novamente, oferecendo seu vasto palco aos bailarinos. ;É triste, mas fazemos o que está ao nosso alcance para não deixar a dança morrer em Brasília.;
É com esse pensamento esperançoso que ela se uniu a Rosa Coimbra, 60, outro grande nome entre as damas da dança brasiliense. Com a colega coreógrafa e diretora do Fórum Nacional de Dança e representante da Região Centro-Oeste junto ao Ministério da Cultura, Norma tenta criar uma espécie de ;pré-corpo de baile; para Brasília.
A ideia de Rosa e Norma é pedir que cada professor e companhia separe seus melhores bailarinos e formem um grupo para, uma vez por semana, ter aulas com os melhores professores e coreógrafos da cidade. ;Ninguém paga, e a única que ganha é Brasília;, afirma Norma.
Rosa compartilha do pensamento das colegas: com muitos talentos, acabamos exportando demais por conta da desvalorização enfrentada na cidade. ;Vejo esses grupos de hip-hop, de danças de rua e contemporânea despontando sem apoio nenhum e percebo que eles têm muita garra. Pois só assim para conseguir viver da dança;, acredita.
Onde dançar em Brasília
- Academia de Dança Clássica de Brasília ; Norma Lillia
SCLS 108, Bloco E, Loja 1 (61) 3242-3883
- Escola de Dança Noara Beltrami
CNB 11, Lote 2, Loja 2, Taguatinga Norte (61) 3351-0373
- Claude Debussy ; Instituto de Música, Dança e Teatro
SCRN 716, Bloco C, Loja 36 (61) 3349-0506
- Academia Lucia Toller ; Ballet Clássico, Danças e Fitness
EQS 108/308, Bloco C
(61) 3443-4015
- Companhia de Dança Marcelo Amorim
SHCGN CLR 710, Bloco A, Sobreloja 14 (61) 3274-9261
- Companhia de Dança Rodrigo Cruz
Escola Parque de Ceilândia e Centro Cultural e Desportivo de
Ceilândia (61) 99121-8787 ou (61) 98557-8709
- Cia Have Dreams
ciahavedreams@gmail.com ou facebook.com/CiaHaveDreams