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Bebida: um falso ídolo

Em livro recente, pesquisadores mostram que o culto ao álcool em nossa sociedade se assemelha a rituais de adoração divina

Gláucia Chaves
postado em 17/02/2013 08:00
Em livro recente, pesquisadores mostram que o culto ao álcool em nossa sociedade se assemelha a rituais de adoração divinaPara pessoas religiosas, alcançar a paz de espírito é possível por meio de uma entidade sagrada, que acalma e dá conforto nos momentos de dificuldade. Para os psicanalistas Antonio Alvez Xavier e Emir Tomazelli, autores do livro Idealcoolismo (Editora Casa do Psicólogo), há outro lugar, não relacionado a cultos ou missas, em que alguns indivíduos vão em busca de amparo para a alma: o bar. No livro, os médicos avaliam a relação do alcoolista com o próprio álcool ; e como fica a autoimagem dos doentes nessa situação. Na obra, Xavier e Tomazelli entrevistaram mais de 5 mil alcoolistas ao longo de uma década e chegaram à conclusão de que a bebida, para eles, é como um deus.

Os adeptos da ;religião etílica; são chamados pelos médicos de idealcoolistas. A proposta, segundo eles, não é ignorar todos os estudos que avaliam os efeitos negativos do álcool no organismo, mas abordar a doença também pelo ponto de vista psicológico. ;Pensamos que não há, primariamente, uma dependência química, e sim o uso de um agente químico fortemente impregnado de fatores psicológicos e socioculturais;, escreveram os psicanalistas no prólogo da obra. O indivíduo, então, usaria dos efeitos tóxicos do álcool para atingir um estado mental, não necessariamente ligado a seu aspecto biológico. O conforto, a ilusão de felicidade e o alívio proporcionado pela embriaguez trariam a mesma sensação de gratidão que um culto religioso.

Antonio Alves Xavier explica que a analogia correta com um alcoolista não se aplica a toda e qualquer pessoa que tenha uma religião. ;O alcoólatra é o religioso degradado;, detalha. ;O que ambos buscam fazer é escapar da condição humana e se tornar uma prótese de Deus.; Assim como há o indivíduo que vive a crença de modo saudável e os religiosos fanáticos, dispostos a matar ou a morrer pelos preceitos da religião, também há diferenças entre usuários de álcool. ;Há duas formas de alcoolização: a que a maioria das pessoas faz, que é infantil, recreativa e transitória, e a alcoolização ;alcoólatra;, em que a pessoa bebe rapidamente, sem se importar com o tipo de bebida. O que interessa é que tenha álcool, e que não sobre bebida no copo.;

O tratamento proposto pelos psicanalistas está justamente nesta vontade de transcender, presente em todo viciado. Se a intenção ao usar a droga é esquecer que se é humano por alguns momentos, a solução para abandonar o vício é relembrar ao doente que ele é, na verdade, um mero mortal. ;Chamamos esse tratamento de choque de humanidade;, explica o médico. ;Enquanto ele bebe e ;foge para as alturas;, vira deus e deixa de ser humano. Nossa função clínica é trazê-lo de volta ao chão.; Mostrar referências de tudo o que é mundano é uma das formas usadas para fazer com que o alcoolista volte a si. Segundo Xavier, é importante que médicos, amigos e familiares estimulem o paciente a descrever seus sentimentos, prestar atenção ao que acontece ao seu redor e lembrá-lo de que há uma vida a ser vivida aqui mesmo, na Terra.

José (nome fictício) passou 38 dos seus 50 anos de idade bebendo. Tudo começou com um gole da cachaça do pai, quando ainda era criança. ;Achei uma delícia;, conta o aposentado. Aos 15 anos, José começou a beber ;de verdade;. Pelo menos três vezes por semana, lá estava ele, sentado na mesa do bar virando doses e doses de pinga. Com o salário que passou a ganhar quando entrou para a polícia, aos 21 anos, ficou ainda mais fácil beber. José passou a última década bebendo todos os dias, religiosamente. ;Nos últimos anos, tomava, pelo menos, uma garrafa de vodca sozinho.; A embriaguez e a ressaca constantes impediram José de trabalhar.

Mesmo após dois anos se consultando com psicólogos da Polícia Militar, José não conseguiu deixar o vício. Ele procurou uma clínica de reabilitação e se internou por nove meses. ;Vi que não conseguiria continuar vivendo daquela forma. Não aguentava mais, nem física nem mentalmente.; Agora, José está sóbrio há dois anos. Ele conta que, na época em que bebia, o álcool representava algo que era necessário, essencial para se manter em equilíbrio. ;O álcool faz você se sentir bem. Não existem mais problemas. Eu tinha um universo paralelo, no qual acontecia tudo do jeito que eu queria;, descreve. ;O momento que eu bebia era o mais importante do dia.;

O ápice do vício de José custou seu emprego, seu casamento e sua saúde. Mas ele se casou de novo, há 15 anos, e vive o ;ateísmo etílico; ao lado da mulher (que não bebe) e da filha, de 5 anos. A briga contra a vontade é diária, e a vontade vem e vai. Até agora, José segue vitorioso, sem nenhuma recaída. Porém, mesmo sem frequentar mais bares ou locais em que a bebida alcoólica é o foco principal, o inimigo está em todos os lugares ; e se mostra com frequência. ;Acho muito cruel incentivar alguém a beber, como fazem as propagandas;, critica. ;A mensagem que elas passam é que as pessoas estão felizes, mas a realidade do alcoolista é inversa, só tem dor e solidão. A sociedade incentiva, mas, depois que você está doente, ela o exclui. É uma arma perigosa contra a juventude.;

Promessas perigosas

Arthur Guerra de Andrade, presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) e professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que a autoimagem de um paciente alcoolista varia, mas, na imensa maioria dos casos, o aditivo é usado para que eles se vejam de uma maneira mais positiva. ;O álcool entra como uma muleta para mudar a visão que eles têm de si. Ele passa a não se ver como um sujeito viciado, fraco e doente.; Para o médico, comparar um alcoolista a um religioso fanático faz sentido, mas há uma diferença crucial na maneira que cada um dos dois vê o objeto de desejo. Enquanto um religioso ama o seu deus e quer ser parecido com ele, o alcoolista ama o efeito que esse ;deus; tem em sua vida. ;Tem pacientes que acham o gosto da bebida ruim e o cheiro forte, ou seja, não gostam dela em si. Mas acham que precisam estar alcoolizados para seguir com a vida.;

A dificuldade de aceitar que está doente é o ponto mais complicado no tratamento de pacientes alcoolistas, segundo Patrícia Aires, psicóloga da clínica Horus. ;Eles computam a culpa nos outros, não na doença.; Frases como ;eu nem queria beber, mas tive um dia péssimo; são exemplos dessa transferência de responsabilidade. ;Isso acontece porque o álcool proporciona um sentimento de companheirismo;, detalha Aires. O problema é que há pessoas com predisposição a vícios e outras não. ;As pessoas acham exagero falar sobre álcool, mas ele é perverso, pois tira a ingenuidade dos indivíduos. Os viciados acham mágico ser tímido, beber e, de repente, ter coragem para fazer as coisas.;

Flávio (nome fictício) é terapeuta em uma clínica de reabilitação involuntária. Ele conta que não pode ter dados como nome ou rosto divulgados, pois os pacientes não sabem que serão internados. Sua experiência com alcoolistas o ajudou a definir um ;perfil psicológico; dessas pessoas. ;O alcoolismo é a doença das emoções;, explica. ;O alcoólatra é alguém que não consegue lidar com os seus sentimentos. Qualquer emoção mais acentuada faz aumentar a vontade de beber.; A idolatria pelo álcool existe, segundo Flávio. Mas ela não está apenas na cabeça do dependente. ;Ela existe na sociedade. Você a vê na mídia, nas músicas, na imposição que a sociedade faz para que se beba. É a sociedade que está doente.;

O que não se mostra em anúncios é a face feia do ;deus álcool;, explica Flávio. Após a felicidade e aparente tranquilidade, há a dura realidade de uma doença incurável, progressiva e fatal. ;As outras fases são repletas de depressão e ansiedade, que fazem com que ele tome a segunda dose e comece tudo de novo.; Alguns tratamentos insinuam que um alcoolista pode voltar a beber socialmente, diz Flávio. Porém, ele defende que a única forma de não ser enganado pelo culto ao álcool é não testá-lo nenhuma vez. ;Não viveremos para ver o fim dessa publicidade, pois, além de movimentar muito dinheiro, ela está em desenhos animados, filmes e novelas. Já está enraizada;, opina. ;Beber é brincar de roleta-russa. Assim que ingerir o primeiro gole, quem tem predisposição vai manifestar a doença.;

A forma descompromissada como o álcool é visto se reflete na forma como ele é encarado. A maioria das páginas relacionadas ao álcool no Facebook, por exemplo, tem um viés de humor. É comum encontrar pequenos bares particulares em casa. Por isso, segundo Raphael Boechat Barros, psiquiatra do Hospital Santa Lúcia, é difícil largar o vício. ;As pessoas crescem vendo os outros beberem. Eventos de lazer também estão associados à bebida, como futebol e carnaval;, completa. Proibir a propaganda, aumentar os preços e fazer campanhas contra a bebida são medidas que já foram tomadas em relação ao tabaco ; e, para o médico, ajudariam a diminuir a incidência de novos dependentes caso fossem usadas também para bebidas alcoólicas.

Leia esta matéria na íntegra na edição n; 404 da Revista do Correio.

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