O Instituto de Advocacia Racial (Iara) já acusou duas obras de Monteiro Lobato de terem teor racista: Caçadas de Pedrinho e Negrinha. O primeiro foi tema de discussões e foi pauta de uma audiência do Supremo Tribunal Federal em 11/9 para analisar a adoção do livro no Programa Nacional Biblioteca na Escola, que havia sido liberada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). A audiência terminou sem acordo. Um dos pontos críticos do debate é a recomendação do CNE de que o livro seja adotado nas escolas sempre acompanhado com orientação e comentário dos professores para contextualizar o momento histórico em que foi escrita a obra.
Outra audiência de conciliação ocorreu na última terça-feira (25/9) e também finalizou sem consenso sobre o que deve ser feito. Consistentes argumentos contrários e favoráveis à obra do escritor brasileiro existem. Confira agora um artigo do advogado Erival da Silva Oliveira, assessor jurídico do Ministério Público Federal em São Paulo, que usa a Constituição para defender a obra de Monteiro Lobato.[SAIBAMAIS]
Textos de Monteiro Lobato têm proteção constitucional
Por Erival da Silva Oliveira
Percebe-se que nos textos de Monteiro Lobato, existem referências de caráter jocoso e que estão em contexto literário. Não se constata atividade racista que mereça repressão governamental (censura).
A Constituição Federal de 1988 estabelece no artigo 220 que:
;Art. 220 ; A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.;
Infere-se da norma que dentro do Estado Democrático de Direito, instituído pela Ordem constitucional, a livre manifestação do pensamento é regra, com fulcro no artigo 5;, incisos IV, V, X, XIII e XIV. Como se não bastasse, tal premissa reflete o espírito pluralista (art. 1;, IV, CF) que funda a sociedade brasileira.
Nessa direção, o ; 2; do artigo 220, veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Não foi por acaso que o constituinte de 1988 quis pontuar veementemente tal liberdade. Sabe-se que no período de 1964 a 1985 tivemos na História Brasileira a Ditadura Militar, período, no qual direitos e liberdades fundamentais foram tolhidos, em razão da chamada ;segurança nacional;.
O julgamento da ADPF n; 130 pelo STF deixou claro que prevalece a liberdade de imprensa do ordenamento brasileiro, não havendo a censura prévia como resquício do período ditatorial:
"A Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome ;Da Comunicação Social; (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de ;atividades; ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização. (...) O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela CF como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional ;observado o disposto nesta Constituição; (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da ;plena liberdade de informação jornalística; (; 1; do mesmo art. 220 da CF). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação." (, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009.)
Embora a liberdade de manifestação, de imprensa seja regra, os abusos cometidos pelos meios de comunicação, que serão apurados posteriormente, hão de ser responsabilizados.
Em novo trecho da decisão supramencionada:
;Cabe observar, bem por isso, que a responsabilização a posteriori, em regular processo judicial, daquele que comete abuso no exercício da liberdade de informação não traduz ofensa ao que dispõem os ; 1; e ; 2; do art. 220 da CF, pois é o próprio estatuto constitucional que estabelece, em favor da pessoa injustamente lesada, a possibilidade de receber indenização ;por dano material, moral ou à imagem; (CF, art. 5;, incisos V e X). Se é certo que o direito de informar, considerado o que prescreve o art. 220 da Carta Política, tem fundamento constitucional (, Rel. Min. Ellen Gracie), não é menos exato que o exercício abusivo da liberdade de informação, que deriva do desrespeito aos vetores subordinantes referidos no ; 1; do art. 220 da própria Constituição, ;caracteriza ato ilícito e, como tal, gera o dever de indenizar;, (...), tal como pude decidir em julgamento proferido no STF: ;(...) A CF, embora garanta o exercício da liberdade de informação jornalística, impõe-lhe, no entanto, como requisito legitimador de sua prática, a necessária observância de parâmetros ; entre os quais avultam, por seu relevo, os direitos da personalidade ; expressamente referidos no próprio texto constitucional (CF, art. 220, ; 1;), cabendo ao Poder Judiciário, mediante ponderada avaliação das prerrogativas constitucionais em conflito (direito de informar, de um lado, e direitos da personalidade, de outro), definir, em cada situação ocorrente, uma vez configurado esse contexto de tensão dialética, a liberdade que deve prevalecer no caso concreto.; (, Rel. Min. Celso de Mello).; (, Rel. Min. Ayres Britto, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009.) No mesmo sentido: , Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 25-11-2010, DJE de 1;-12-2010. Vide: , Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 10-12-2009, Plenário, DJE de 25-6-2010.
Na esfera individual, qualquer caso de violação do direito poderá ser objeto de medida judicial, tanto no âmbito cível, quanto no penal. Se for referente à prática de racismo (Lei n; 7.716/89) ou injúria racial (artigo 140, ;3;, do Código Penal Brasileiro), teremos a atuação do Ministério Público para fazer a denúncia (ação penal pública) ou da própria vítima (queixa-crime), respectivamente.
A Constituição Federal, em seu art 5;, inciso IV, garante a livre manifestação do pensamento, desde que não se mantenha no anonimato, fato que não ocorre no caso em tela, já que se trata de obra literária.
No inciso I do parágrafo único, do artigo 1;, da Lei n; 12.288/10 há a descrição do que pode ser considerado discriminação racial:
I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;
Assim, define-se o que seja discriminação racial ou étnico-racial como sendo ;toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada.;
Pela leitura do texto acima, nota-se que o Estatuto da Igualdade Racial, basicamente, repetiu o conceito de discriminação descrito na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
O termo destacado revela que a conduta praticada é finalística, ou seja, o agente ou instituição que pratica a discriminação a faz com intuito de anular ou restringir os direitos fundamentais da população negra, ferindo a igualdade de condições.
Segundo, Douglas Martins de Souza ;aqui a fórmula adotada pela Convenção (e que integra nosso ordenamento jurídico) aceita, como referência jurídica suficiente ao reconhecimento da discriminação, não apenas sua forma direta, mas também a indireta.; (SOUZA, Douglas Martins, In: Estatuto da Igualdade Racial: Comentários Doutrinários, 2005. p.105).
Imperioso explicitar que a discriminação racial ou étnico-racial consiste em ato de separar, segregar, diferençar determinado grupo de outro, em razão de sua raça, cor ou etnia.
A conduta discriminatória é perpetrada de duas formas. A forma direta quando o agente explicitamente segrega, cria obstáculos ao exercício de direitos de certo grupo. Ex.: indivíduo dono de restaurante que coloca placa proibindo a entrada de negros.
Ou, então, se dá pela forma indireta, no caso da conduta discriminatória ficar subentendida ; Ex.: entrevistas de emprego, na qual os candidatos negros são excluídos simplesmente pela cor, embora sejam capacitados para o trabalho.
Alice Monteiro de Barros afirma que a discriminação indireta ;pressupõe um tratamento formalmente igual, mas que, de fato, pode ser eliminado em função do critério utilizado, para assegurá-la.; (BARROS, Alice Monteiro. In.: VIANA, Márcio Túlio; RENAULT, Luiz Otávio Linhares (coords.), 2000. p. 57)
Ainda, o ato discriminatório pode ser praticado por agentes públicos ou privados. Portanto, ninguém está imune de sanção, caso pratique ato que implique na discriminação.
A Lei 7716/1989 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e de modo geral compreende a prática de induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pode-se concluir que nas obras de Monterio Lobato não se impede o exercício de direitos ou acesso à serviços ou locais em função da cor, bem como não se conclama o leitor a exterminar componentes de determinada cor. Assim, não há que se falar em racismo ou estímulo ao racismo em tais obras literárias.