Diversão e Arte

Professora da UnB, Sylvia Cyntrão fala sobre literatura e poesia

Militante das letras, ela criou, em 2006, o Grupo Vivoverso, que divulga em cena textos poéticos e canções

José Carlos Vieira
postado em 02/07/2017 07:00
Professora Sylvia Cyntrão
A literatura e a música sempre estiveram presentes na vida de Sylvia Cyntrão. Por isso, não pensou muito para escolher, em 1974, o curso de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A UFRJ e o convívio com poetas e intelectuais ajudaram a refinar o olhar libertário e de resistência de Sylvia. Em sua trilha sonora e poética, as canções de protesto, o tropicalismo e a literatura produzida por uma geração iluminada. Em 1983, mudou-se para Brasília. Na UnB, fez doutorado ; no curso criado em 1998. ;Minha tese foi a primeira do departamento e tratava do universo da canção popular brasileira;, lembra.
Militante das letras, criou, em 2006, o Grupo Vivoverso, que divulga em cena textos poéticos e canções. O primeiro evento concebido foi roteirizado com textos do escritor gaúcho Fabrício Carpinejar. Poetas da cidade, como Nicolas Behr, Luis Turiba, Noélia Ribeiro, Alberto Bresciani e Oswaldo Montenegro também foram homenageados. ;Minha trajetória é transdisciplinar, portanto, faço um trabalho constante com os estudantes, que é mostrar as relações da literatura com outras artes, sobretudo a canção, além de levar ao palco a palavra falada e cantada. Minha experiência como professora na Faculdade de Teatro Dulcina de Moraes, na década de 1980, ajudou bastante para o aprofundamento dos conteúdos ligados à arte dramática e à montagem de espetáculos.;
Conheça mais sobre o que pensa Sylvia Cyntrão.


Depois de 57 anos da capital, a literatura brasiliense tem uma identidade própria?
Temos escritores brasilienses muito bons que ambientam seus livros na realidade da cidade e outros que não o fazem. Não creio que tenhamos que falar de identidade própria. O Rio tem literatura com identidade própria? São Paulo? Nessas cidades há movimentos artísticos, coletivos que acontecem com mais frequência porque há mais locais que acolhem os artistas, como livrarias, cafés e palcos alternativos. Se queremos, no entanto, falar da necessidade de ações afirmativas em favor do reconhecimento dos escritores de Brasília, isso é outra questão. Ela passa pelas políticas públicas de cultura e por nosso comprometimento institucional, das mídias e da universidade. Quanto às academias de escritores, são um pouco impermeáveis e, sinto dizer, muitas vezes alguns autores repetem fórmulas linguísticas e literárias muito antigas, esgotadas, confessionais, sem densidade, novidade ou consistência, que não interessam ao jovem, por exemplo. Mas valorizo qualquer escritura, pois não é fácil expor-se.

Nesses anos todos, a cidade cresceu demais e a cena cultural parece ter sido pulverizada por uma série de circunstâncias ligadas à gestão, à política e à economia, por exemplo. Na sua opinião, o que pode ser feito para resgatar a identidade e a vocação cultural da cidade?
Os sacrifícios são enormes para quem trabalha com arte em qualquer lugar, mas os governos do DF, francamente, têm relegado os espaços públicos e as oportunidades para os iniciantes ao segundo plano. As confusões institucionais com o FAC são terríveis, embora o conselho tenham uma enorme boa vontade em fazer tudo funcionar. Também são heróis os servidores da Secretaria de Cultura do DF. Muitos craques da música têm sido convidados para festas e bienais, a peso de ouro, como sabemos, ao mesmo tempo em que se pede para os jovens artistas da cidade se apresentarem de graça.

Sempre pergunto a poetas, pesquisadores... Poesia serve pra quê?
Jean-Jacques Rousseau falou que a verdadeira função da literatura é o estudo da condição humana... Como disse o escritor Affonso Romano de Sant;Anna, poesia não serve pra ;nada;, mas sobre esse ;nada;, poderíamos filosofar em um curso inteiro na universidade...;. Também o filósofo Edgar Morin ensina que o ser humano vive sobrepondo dois estados: o estado prosaico e o estado poético. O primeiro serve para ele sobreviver, é o dia a dia de manutenção da vida, e o segundo é o que realmente não deixa morrer a espécie, o que mobiliza, impulsiona e transforma, por meio das emoções. ;Tudo; se constrói a partir dessa compreensão não utilitária.

Brasília é uma cidade de poetas... De Fernando Mendes Vianna, Cassiano Nunes a Nicolas Behr, Noélia Ribeiro e Alberto Bresciani... Mas uma dúvida prevalece: há leitores? O que fazer para ampliar o número de pessoas interessadas em poesia?
Brasília é uma cidade com características de resistência nas várias frentes artísticas. Sou poeta também e muito cobrada porque não publico mais em suporte impresso, a não ser em redes sociais, eventualmente. Mas isso foi opção, diante do fechamento dos canais de distribuição do livro e dos desacertos dos últimos governos do DF em relação a editais, que não são devidamente divulgados ou que surgem sem nenhuma divulgação prévia, com pouquíssimo tempo para apresentar uma proposta...

E o Fundo de Apoio à Cultura?
Houve uma boa tentativa de organização do FAC, creio que por meio de bem-intencionados gestores, mas o dinheiro para cultura é irrisório e esse é o único financiamento que (não) temos no GDF para levar adiante projetos dessa natureza. Entre os projetos que levo adiante está o Grupo Vivoverso da UnB, que trabalha com a poesia brasiliense, todos são financiados com valores também bem restritos pela Capes, agência de fomento do Ministério da Educação. Mas não estou reclamando, só constatando, pois ainda bem que temos tido algum reconhecimento. Aproveito para dizer que a poesia brasiliense é nosso objeto de estudo e de divulgação sempre. Criei, inclusive, em 2015 no Instituto de Letras o Prêmio Literário Nicolas Behr para conto e poesia, e que está agora em sua segunda edição. O primeiro teve prêmios em dinheiro patrocinados pela Editora Petry.

E os leitores?
Quanto aos leitores... Bem, isso aí é a receita pra resolver os problemas do país: mais leitores. Porque ler ; entendendo o que está lendo ; acessa estruturas psíquicas profundas, como sabemos; mobiliza a reflexão, a crítica, a constituição de consciência, a aceitação das diferenças, a busca de respostas esclarecedoras da vida. E o resultado disso é a constituição da autonomia de pensamento. Só uma sociedade assim constituída consegue se formar com condições de autogerir-se e de não naufragar na degradação de valores contra o cidadão, que é o que estamos vendo acontecer com espanto diário no âmbito das relações institucionais no país.

A autonomia de pensamento promove comprometimento. Em condição de fragilidade social, é muito difícil criar e manter um público leitor. Vejo isso nas escolas: as crianças querem a merenda escolar... E crescem sendo apenas alfabetizados funcionais. Alunos que não entendem o que leem, por isso, não têm condições de compreender o mundo de forma crítica, de ponderar, avaliar os contextos e, aí sim, se posicionar.

Aumentar os recursos para educação e a produção de cultura é o caminho, mas estamos vivendo uma situação no Brasil de total desprezo pelo povo. Há muitos anos. Os governos não têm conseguido se resolver para dar suporte ao conhecimento. Os mestres do ensino fundamental são os verdadeiros heróis deste país. Todos os dias, eu vejo algum aluno meu na UnB, professor de ensino básico ou médio, fazendo incríveis e belos sacrifícios pessoais para ser leal ao compromisso de formar seres humanos mais críticos e socialmente mais comprometidos e mais capazes de se gerir, a partir da leitura.


A poesia precisa ter receita, equações, regras a serem seguidas? Como se chega ao refino estético? Como diferenciar a boa da má poesia (se é que ela existe)?
Essa resposta não é difícil de ser dada. A má poesia é a do autor que pensa que apenas a abordagem do tema do amor já o qualifica como poeta. O tema não constrói o poema por si, o trabalho com as possibilidades da linguagem para comunicá-lo, sim. A má poesia é a que reproduz clichês e retoma estruturas linguísticas e imagens desgastadas do tipo ;o amor, a flor, o ser, a alegria de viver;. O poeta é alguém que tem compromisso com a linguagem metafórica. É alguém que tem o dever de representar pensamentos e sentimentos de forma sempre renovada, e com isso não estou falando de erudição. Um dos poemas mais fantásticos que conheço, de Oswald de Andrade, é de uma simplicidade franciscana, veja...
América do Sul
América do Sol
América do Sal

A simples comutação de vogais, ou seja, esse recurso linguístico remete a uma descrição crítica, ao mesmo tempo, da realidade histórica, geográfica e econômica do espaço em que vivemos, em oposição ao que seria a referencialidade de um texto escolar que falasse sobre a América do Sul.

Manoel de Barros dizia que poesia não é compreensão, é incorporação. É por aí?
Acho, sim, que é preciso vestir poesia, incorporar-se desse estado, mas também acho que poesia promove iluminação. Um poema pode levar a uma compreensão maior de mim mesma, pois me conecta com o imaginário coletivo (;poesia é imagem;, dizia o poeta Otávio Paz) e expande meu entendimento das questões existenciais que me cercam e a meus semelhantes, pela linguagem, que é sempre ideológica, ou seja, a linguagem poética nunca é neutra ; mostra e esconde ao mesmo tempo.

Na literatura brasileira temos poucas mulheres que se destacaram. Você considera o mundo literário machista?
Isso é curioso. O mundo literário ainda é tão machista quanto o mundo em si, e reflete a difícil condição feminina no aspecto de sua inserção na sociedade brasileira. Há uma defasagem histórica. No entanto, se formos à área das letras poéticas da canção popular vemos hoje as mulheres se destacarem como compositoras, seja no pop, no funk ou no samba.

O mundo tecnológico abre possibilidades estéticas que podem (e devem) complementar o trabalho do escritor. Mas muitas pessoas ainda temem a banalização da literatura, defendem a permanência dela numa torre de marfim. É esse o caminho?
As textualidades se expandem, já não há apenas um único, difícil e caro caminho que é o da produção do livro impresso. Quanto à banalização, bem... Paulo Coelho banalizou, pasteurizando, toda a literatura oriental em seus livros e é o escritor de livros mais vendido no Brasil. Não acho mal... Há público que se beneficia com suas pílulas filosóficas. E nunca acho ruim o que faz bem em alguma medida. Não sustento, no entanto, a falsa expressão artística que veicula preconceitos e introjeta comportamentos de exclusão ou que aliena o pensamento. Algumas manifestações ficam bem apenas como entretenimento passageiro. Mas o mundo tecnológico abre, sobretudo aos escritores iniciantes, a possibilidade de se fazer conhecer e de testar o que o público espera dele, como também, a partir daí, abre a possibilidade de escolher seu público.

Há muito pouco tempo, poetas da geração marginal, como Paulo Leminski, Roberto Piva, Chacal, entre outros, não eram bem vistos pela academia. Uma coisa parecida ocorreu com os beatniks nos EUA. Por que segmentos ligados à erudição têm tanta dificuldade em dialogar com a contemporaneidade?
A realidade que conheço bem, e que ajudo a construir, é a da Universidade de Brasília. Lá, no Departamento de Teoria Literária e Literaturas, somos referência no estudo de textos contemporâneos e neles identificamos as grandes questões sociais que nos afligem. Temos 20 grupos de pesquisa e pelo menos a metade deles trabalha com obras recentes da literatura brasileira e de outras nacionalidades. Cabe à universidade a avaliação dos produtos artísticos e sua sistematização formal, como contribuição ao conhecimento, no caso das ciências humanas. E essas ciências das linguagens sempre lidaram com o impreciso da alma humana, com a dialética da vida que se alterna entre a claridade e as sombras, que lida com a expansão das capacidades mentais de compreensão....A resistência geral se dá quando apenas o ;disciplinar; ; que é o universo específico dos conteúdos ; é o único vetor valorizado. E isso cria muros, não beneficia ninguém. As fronteiras disciplinares existem e são naturais, mas não podem virar barreiras. Nós, lá na Literatura da UnB, entendemos assim.

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