Grandes autores vivem um instigante desafio: uma vez consagrados, terão a tarefa de se equilibrar vida afora no fio da navalha que separa o escritor comum daqueles capazes de dar um passo que nos conduza à excepcionalidade. Então, aquilo que era glória se transforma numa espécie de provação que se põe diante de artistas e escritores a cada vez que apresentam uma nova publicação. Se aos 24 anos o mineiro Luiz Vilela surpreendeu a literatura brasileira com seu consistente Tremor de terra (contos, 1967) e reafirmou sua grandeza com o também premiado O fim de tudo (contos, 1973) e em outros trabalhos, o brilho é menor em O filho de Machado de Assis, recém-lançado.
A novela pode perfeitamente ser enquadrada na categoria ;bom livro;, o que é pouco para um Luiz Vilela. Ainda assim, estão lá a eficiente narrativa e o grau de requintada simplicidade de seus textos, traduzido naquela capacidade de elaboração tão própria de autores que nos falam como se estivessem numa conversa informal em nossa cozinha. Mas esta qualidade, mesmo que somada às formas calculadamente concisas emprestadas aos personagens e aos cenários (predominantemente, uma sala de apartamento), não é o bastante para que produzir uma peça ;instigante;, como apresenta a editora.
Além disso, falta o novo na exploração da temática central, como indica o nome da novela: o escritor Machado de Assis (1839-1908) de fato teve um filho e manteve isso em segredo? Num romance de 2008, A filha do escritor, Gustavo Bernardo explorava essa abordagem por um ângulo assumidamente ficcional: ambientava num hospital psiquiátrico de Itaguaí, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Lívia, uma mulata como o Bruxo do Cosme Velho, a quem se referia como seu pai.
Relação extraconjugal
A teoria de que Machado teve um filho é quase centenária. Foi alimentada pelo escritor maranhense Humberto de Campos (1886-1934), membro da Academia Brasileira de Letras a partir de 1919. Ganhou ares de fofoca, já que sugeria uma traição: Mário de Alencar, filho de José de Alencar (1829-1877), na verdade teria sido gerado num romance extraconjugal da mulher do romancista com Machado, de quem era amigo. E o icônico Dom Casmurro, lançado em 1899, ensaia uma suposta confissão, ao expor Capitu, fuzilada pela convicção do marido, Bentinho, de que o filho, Ezequiel, tem rigorosamente todos os traços do amigo Escobar.
Vilela revisita o tema com o professor Simão, que em suas pesquisas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro descobre uma referência ao que seria o filho de Machado ; ainda que contrarie os relatos oficiais e citações literárias machadianas, como em Memórias póstumas de Brás Cubas (;Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria;). A aura de ansiedade vai devorá-lo, a ponto de revelar o segredo a Mac, um de seus ex-alunos.
A descrição da trama no apartamento do professor e os diálogos cirúrgicos dão o tom de quase sussurro à narrativa. E ajudam a criar o clima em que os personagens centrais, Simão em especial, são movidos pelo temor de que a informação secreta perca seu caráter de verdade não revelada de uma forma que fuja ao caráter solene, emblemático, como pediria uma descoberta como aquela.
Ao mesmo tempo, Vilela contrapõe o dilema de convicções entre o professor e Mac, o que apimenta a polêmico em torno dessa nova versão. O primeiro, seguro de que está diante de uma das revelações do século, mas disposto a desnudá-la tão somente em doses homeopáticas. O segundo, num grau de desconfiança que coloca à prova tanto a teoria quanto a sanidade de seu interlocutor, tentando insistentemente puxar os fios do novelo de uma só vez. O desfecho de O filho de Machado de Assis, porém, vai privilegiar o suspense. E Vilela, com seu jeito comezinho, hábil narrador, há de deixar perguntas para um próximo capítulo.
O filho de Machado de Assis
Record. 127 páginas. R$ 39,90