Nahima Maciel
postado em 10/05/2016 07:30
Frédéric Martel tem um olhar especial para o Brasil. É, ele defende, um dos poucos países cuja cultura popular é forte o suficiente para ser exportada. Por ser forte, essa cultura não sucumbe à banalização ou à uniformização quando atinge os mercados internacionais. É um soft power poderoso, mas que pode não ser eterno. A cultura digital é uma ameaça porque ela transforma os conteúdos. Segundo Martel, esse efeito é o dobro daquele provocado pela globalização. O Brasil é um exemplo que o sociólogo e jornalista francês gosta de explorar. Ele desembarca em Brasília na próxima sexta-feira para participar do dia D, evento organizado pelo coletivo D para refletir sobre a cibercultura e os usos da internet. E Martel é um especialista no tema.
No livro recém-lançado Smart, o francês propõe uma pesquisa sobre a globalização digital em 50 países. Martel quer descrever a transição vivida nos últimos anos e refletir sobre o que está por vir. No livro, ele percorre regiões como o Vale do Silício, polos tecnológicos da China e de Hong Kong, empresas de tecnologia indianas e faz até uma incursão pelo sistema de comunicação digital que permite ao Hezbollah manter-se organizado. Dessas experiências, Martel traz uma visão única: globalização não é igual a uniformização. A internet é uma ferramenta e, em cada cultura e sociedade, encontra um significado e um modo de uso.
Smart é quase um livro de costumes sobre o uso da rede. Uma grande reportagem sobre como são construídas os modos de vida digitais em culturas tão distantes quanto a geek do Vale do Silício e a capacidade de copiar modelos da China. Como explica o sociólogo, as questões digitais estão enraizadas em territórios e são, portanto, territorializadas. No entendimento do pesquisador, a internet não vai enterrar as diferenças culturais ou linguísticas para transformar o mundo em lugar único no qual todos falam, simbolicamente, a mesma língua, nem vai abolir os limites geográficos. Ao contrário, ela está subordinada a eles. Mesmo que o acesso seja generalizado graças aos smartfones ; e daí o título do livro ;, a rede e seus usos terão a configuração dos territórios aos quais estão ancorados.
Frédéric Martel é um otimista. Para ele, a grande mudança acontece agora, quando a web passa de espaço de informação para espaço de comunicação, com seus usuários produzindo conteúdos focados no desenvolvimento humano. Smart, ele avisa, não é ;o futuro da internet;, mas o ;futuro do conhecimento e o de sua territorialização;. A cultura globalizada existe, Martel não nega, mas para ele, essa globalização não é dominante. Em entrevista, o sociólogo conversou com o Correio sobre os vários aspectos da cultura digital no mundo contemporâneo.
Smart ; O que você não sabe sobre a internet
De Frédéric Martel. Tradução:
Clóvis Marques. Civilização Brasileira,
462 páginas. R$ 65
Dia D
Palestra com Frédéric Martel.
Dia 13 de maio, às 9h, no auditório da Aliança Francesa (SEPS 708/907) . Inscrições: R$ 80 (eventodiad.com.br). Vagas são limitadas.
>> entrevista Frédéric Martel
O senhor é otimista em relação a internet e aos usos que fazemos da rede?
Estou mais para otimista, mas sou sobretudo atento. Há alguns anos, pensávamos primeiro nas trocas na internet por meio do Google e dos motores de busca. Hoje, o Google permanece determinante, mas Facebook é, de certa forma, mais importante. Não falamos da mesma maneira no Google, Facebook, Instagram ou SnapChat. No Google, utilizamos palavras-chave para sermos virais. No Facebook, o algoritmo permite atingir apenas 5 a 8% do público, então é preciso engajar uma conversa com amigos e suscitar likes, compartilhamentos e comentários. No Twitter e no Instagram, também é diferente. Ao mesmo tempo, começamos a pensar a comunicação por meio dos serviços de mensagens instantâneas como Messenger, WhatsApp e Snapchat. A internet se transforma constantemente, é excitante e inquietante também. Mas há um problema de abuso de posição dominante. O Google domina todas as buscas e o Facebook, as redes sociais, já que Instagram, WhatsApp e Messenger pertencem também ao Facebook.
Acredita que a crítica cultural vai desaparecer? Ou se transforar? Os algoritmos são uma ameaça à crítica?
Acho realmente que a crítica tradicional de cinema, livro ou música é uma espécie em via de extinção. Elitista, top-down e vertical, ela não está mais adaptada à era digital e, sobretudo, não é mais capaz de identificar e de dar conta dos conteúdos, que se tornaram muito numerosos. Milhares de títulos estão disponíveis no Soptify, milhões de livros, incluindo novidades, estão na Amazon Prime e centenas de milhares de filmes e séries de televisão estão no Netflix. O crítico está ultrapassado e sua palavra perdeu legitimidade. Ao mesmo tempo, os algoritmos que são eficazes no Spotify, na Amazon, no Netflix e no Youtube estão nos seus limites e em fronteiras decisivas. No Facebook e na Amazon, o algoritmo depende da publicidade. No Soptify, o gosto dos consumidores é um funil muito mais restritivo. Claro, os algoritmos vão se desenvolver e ser melhorados, mas não acho que as máquinas sozinhas possam substituir os críticos.
O senhor fala de ;smart curation;. É realmente possível tornar a máquina mais humana?
A smart curation é justamente a associação das máquinas e dos humanos. Eu cunhei esse termo e acredito que devemos inventar ferramentas que misturem algoritmos, indispensáveis diante da abundância de conteúdos na web (o smart), e o julgamento humano, para refinar as buscas e personalizá-las (o curation). Essa ;smart curation; é, na verdade, uma mistura necessária e nós já temos exemplos como os booktubers, esses jovens que falam de livros no YouTube (e que os algoritmos tornam virais em seguida) ou ainda a nova função ;discovery weekly;, do Spotify, que é baseada no algoritmo, completada pelas próprias escutas da massa e de influenciadores personalizados (DJs, produtores, blogueiros, críticos;). Acho que a smart curation é um campo muito vasto de inovações para a cultura, a mídia e mesmo como um modelo econômico para as futuras start-ups. Sobretudo, a smart curation é sempre localizada e até mesmo geolocalizada. Ela só pode ser feita localmente, sobre um território, para um público preciso, que está em uma certa esfera cultural e vive em uma comunidade precisa.
No prefácio de Smart para a edição brasileira, o senhor diz que o Brasil conseguiu construir um verdadeiro soft power graças à cultura de exportação. Em que medida esse tipo de cultura pode sobreviver à globalização digital?
Ela já sobrevive porque ela é dominante no Brasil. Estranhamente, a cultura não está se uniformizando na era da globalização. E os conteúdos não viajam bem na internet: eles restam muito geolocalizados, dependentes das línguas, dos territórios, das esferas culturais. O Brasil é um país grande unificado por uma língua, isso o protege e é um formidável motor cultural. Em revanche, o modelo atinge seus limites quando se trata de exportar essa cultura e esses conteúdos digitais. Paradoxalmente, as fronteiras continuam na internet. O Brasil conseguiu, com seu soft power, mais que a maioria dos países da América Latina, mas ele permanece longe dos Estados Unidos.
Por que o Brasil é tão importante em suas pesquisas?
O Brasil foi um dos focos de todos os meus livros sobre a mundialização e estará também no meu próximo livro. Isso se explica por causa da minha paixão pela América Latina em geral e pela cultura brasileira em particular. Mas isso vai além de uma escolha afetiva, é também uma escolha intelectual. O Brasil é, às vezes, apresentado como um país emergente, noção condescendente e paternalista. O que há em comum entre o Brasil e a ditadura chinesa? Ou entre o Brasil e a Rússia de Putin? A noção de país emergente é cada vez menos operante e, no mundo digital, menos que em qualquer outro lugar. Por isso o Brasil parece, para mim, ao menos, como um país emergente de referência. Ele é o grande emergente digital que conta e aquele que quero observar.
O senhor também defende que os conteúdos não viajam bem na internet. Por quê?
A ideia central do Vale do Silício é que todo mundo entre em uma grande conversa global que será feita em inglês, com uma cultura uniformizada, e que as culturas desapareçam. Depois de pesquisar em 50 países, eu não encontrei essa grande conversa. Vejo uma internet muito fragmentada em relação aos seus conteúdos. Essa é uma boa notícia para a diversidade e para o país.
Como usar os conteúdos de maneira criativa?
A internet é um disruptor formidável e a ;destruição criativa; caracteriza nosso tempo. Mas nem todo mundo será um grande artista ou um grande escritor. Qualquer um pode fazer poesia no Instagram ou colocar sua música no YouTube, mas a grande quantidade de conteúdos torna o sucesso muito mais difícil. As técnicas de promoção, de marketing, centradas nas redes sociais, mudam e os conteúdos se multiplicam. Mas uma voz, uma criação original e única, um conteúdo cultural necessário, inovador e de qualidade, isso fica para sempre.
Qual o futuro das indústrias criativas diante da velocidade da produção e consumo de conteúdos?
Respondo com uma anedota. Na França, apresento um das principais emissões sobre as indústrias criativas para a Radio France, a Soft Power. Originalmente, era uma emissão inteiramente dedicada às indústrias criativas. Hoje, 10 anos depois, a mesma emissão é inteiramente dedicada ao mundo digital. O digital está no coração das indústrias criativas, ele faz parte dessa indústria. O futuro das indústrias está intrinsecamente ligado ao digital.
O mundo digital é um caminho sem volta?
Acredito que sim. Estamos entrando no século digital e isso vai mudar fundamentalmente nossa sociedade. Estamos diante de uma grande revolução. Marchamos em direção ao futuro e sabemos que o mundo de antes ficou para trás.
"O Brasil é um país grande unificado por uma língua,
isso o protege e é um formidável motor cultural"