Paulínia (SP) ; Vladimir Carvalho tinha um pequeno tesouro guardado em casa. Por mais de 30 anos, o documentarista preservou latas e latas de filmes com registros do movimento do rock brasiliense dos anos 1980. Ou melhor, uma pequena amostra de apresentações e depoimentos dos rapazes da Turma da Colina. O que Vladimir guardava acabou virando uma espécie de lenda urbana. ;Estudei na UnB até 1991 e por lá se comentava que ele tinha esse material. Há mais ou menos um ano, eu tive a ideia de fazer um filme sobre esse movimento e conversei com o Vladimir;, explicou o produtor Marcus Ligocki sobre o início da produção de Rock Brasília ; Era de ouro. O filme estreou anteontem, na segunda noite da mostra competitiva de documentários do 4; Festival de Cinema de Paulínia.
O cineasta preservou imagens históricas recolhidas enquanto os músicos ainda moravam na capital, mesclando a depoimentos de familiares e dos integrantes de Capital Inicial, Plebe Rude e Legião Urbana. Quem espera por um desses documentários musicais em moda no cinema brasileiro ficará decepcionado. Não há uma só sequência ideal para alavancar a venda de DVDs. Desta vez, o ponto de vista do documentarista, acostumado a explicar a história não oficial de Brasília, é focada em ambiente íntimo, doméstico. Quase a cozinha do movimento.
;Eu conheço o rock e não é de hoje. Em João Pessoa e em Recife, acompanhava sessões do filme Black board jungle, na década de 1950. As pessoas depredavam os cinemas. Presenciei isso. Quando dei aula na UnB, na década de 1980, um dos meus métodos em sala de aula era pedir que os alunos fossem para fora do câmpus e registrassem o que estava acontecendo na cidade. Eles sempre voltavam com os registros do rock de Brasília. Quando achei que eles já não estavam mais dando conta do registro, montei uma equipe para fazer as filmagens, em 1987. Este filme é uma crônica leve, dado o meu engajamento como documentarista, que vocês conhecem;, descreveu Vladimir, lembrando três filmes dele em que o rock estava presente: O país de São Saruê, Conterrâneos velhos de guerra e Barra 68.
Maria do Carmo Manfredini e Carmem Tereza, mãe e irmã de Renato Russo, saíram da capital para acompanhar a sessão. Dona Carminha disse ter descoberto só agora alguns segredos sobre o filho, morto em 1996. ;Algumas coisas eu não sabia. Fiquei com o cabelo em pé durante a sessão;, revelou a professora aposentada. ;A emoção foi crescendo ao longo da sessão. Teve momentos em que eu chorei, sim. Mas conhecia todas as histórias;, contemporizou a irmã, que também é cantora.
;Sou da geração pós-Coca-Cola e não conhecia as origens dessas bandas de Brasília. Não sabia que era coisa de vizinhos;, comentou a arquiteta Susana Barizon, 26 anos. Já o veterinário Tiago Albertini, 30, acompanhou o fim da carreira da Legião: ;Essa geração tinha uma maneira de falar da política que era muito importante;. ;Acho que o momento de recuperar o rock de Brasília é este mesmo. O cinema está maduro para isso;, reconheceu o vocalista e guitarrista da Plebe Rude, Phillipe Seabra, que veio a Paulínia com duas missões: acompanhar a estreia de Rock Brasília e participar das filmagens de Somos tão jovens.
A volta da turma
O ano de 2011 parece ser de retorno à década de 1980. No momento, três produções cinematográficas de uma maneira ou de outra se encontram com a Turma da Colina. Faroeste caboclo, de René Sampaio, é a adaptação da música homônima de Renato Russo. Somos tão jovens, de Antonio Carlos Fontoura, conta a história do cantor antes do sucesso da Legião. Ambos estão em fase de produção. ;Essa coisa estava represada. Parece uma coincidência quase astrológica que esses filmes que começaram a ser gestados em períodos diferentes estejam ficando prontos agora;, observou Vladimir Carvalho.
Para a mãe de Renato Russo, ceder autorizações para a realização desses filmes é uma retribuição aos fãs. ;Eles sempre me perguntam sobre o Júnior. É uma maneira de agradecer às pessoas que gostavam do Renato e da Legião;, disse Maria do Carmo.
O Capital Inicial tinha um show marcado para o dia de exibição do documentário e, por isso, ninguém do grupo compareceu à sessão. Por e-mail, o vocalista Dinho Ouro Preto comentou a coincidência: ;Não acho que tenha demorado para que tenham despertado para esse tema. Talvez o que esteja acontecendo é que as pessoas perceberam que são casos peculiares na cultura brasileira. Partindo desse princípio, só o tempo poderia fazer justiça ao que aconteceu em Brasília;.
Com o mano Caetano
"Conheci o Caetano quando cursei a faculdade de filosofia na Universidade Federal da Bahia (Ufba), mas, claro, o Caetano era um gênio e não precisava fazer curso nenhum. Foi ele quem levou o rock para a Rede Globo, ao convidar a Legião Urbana para se apresentar no programa Chico e Caetano, revelou Vladimir, sobre a inclusão, no filme, do depoimento do cantor baiano opinando sobre a nova geração de músicos do Brasil que estava aparecendo.
Em Rock Brasília, as diferenças entre os tropicalistas e a geração Coca-Cola são explicitadas. "Eles tinham aquela melodia errática e aquelas letras enormes que todo mundo cantava nos shows. Conheci melhor as músicas por causa do meu filho Moreno", relembrou o cantor.
Caetano se apresentou num evento paralelo dedicado somente à música, o PaulíniaFest. "Todo mundo sabe que eu queria muito fazer cinema e acabei músico. Mas muitos dizem que minhas músicas são como filmes em letra e melodia", declarou ele no palco.
Coincidentemente, uma composição de Caetano está entre as mais escolhidas pelos cineastas da competição em Paulínia. Araçá azul estava na trilha sonora do documentário A longa viagem, de Lúcia Murat, e também no curta-metragem Tela, de Carlos Nader.