Quando Cesar Victora se formou em medicina, no fim da década de 1970, a epidemiologia era um campo de estudo que começava a se desenvolver no Brasil. Ainda eram poucos os cientistas que se debruçavam sobre dados populacionais, informações socioeconômicas e registros de doenças e mortalidade para encontrar associações entre elas. Mas o jovem pediatra estava preocupado com uma situação que vivenciava nos postos de saúde de comunidades pobres de Porto Alegre e Pelotas, por onde clinicou. Por mais que tratasse crianças desnutridas e com diarreia, entre outros problemas, elas sempre estavam de volta.
[SAIBAMAIS]Do Rio Grande do Sul, Victora partiu para a Inglaterra, onde se doutorou pela prestigiada Faculdade de Higiene e Medicina Tropical de Londres, pesquisando desnutrição infantil. O primeiro trabalho foi a comprovação de que, no Sul do Brasil, onde predominavam os latifúndios, a mortalidade infantil era muito superior à registrada na região Norte, onde pequenos agricultores tinham as próprias áreas de cultivo.
Ontem, no dia em que completou 65 anos, o epidemiologista se tornou o primeiro brasileiro a receber um dos mais importantes prêmios do mundo na área de saúde, o Gairdner, do Canadá, que, desde 1957, já reconheceu o trabalho de mais de 360 pesquisadores de 30 países. A premiação é considerada um ;pré-Nobel;: entre os laureados até hoje, 84 receberam, depois, o Nobel de Medicina ou de Fisiologia. Modesto, Victora, que é o cientista brasileiro mais procurado no Google, disse ter sido surpreendido com o reconhecimento. ;Fiquei muito satisfeito e surpreso. É um prêmio muito importante na área de saúde global, inclui pessoas que descobriram o ebola e a Aids;, conta.
No anúncio da Fundação Gairdner, que premiou outros seis cientistas neste ano (veja quadro), o reconhecimento de Victora foi justificado, em primeiro lugar, pelas pesquisas que ele desenvolveu a respeito do aleitamento materno. ;Possivelmente, a maior contribuição do Dr. Victora à saúde pública foi seu trabalho nos anos de 1980, com o primeiro estudo mostrando a importância da amamentação exclusiva para prevenir a mortalidade infantil;, destacaram os organizadores do prêmio.
Recomendação mundial
De volta ao Brasil em 1983, o médico se associou ao colega Fernando C. Barros, da Universidade de Pelotas, nos estudos de coorte que, até hoje, acompanham 6 mil pessoas nascidas no município. No início, a ideia era medir mortalidade infantil e número de prematuros, mas, com o tempo, o trabalho se mostrou muito mais revelador.
Em meados da década, Victora resolveu aplicar alguns métodos mais modernos de epidemiologia que, nos países desenvolvidos, estavam sendo usados para investigar doenças crônicas. ;Tive a ideia de aplicá-los para a mortalidade infantil;, diz. Naquela época, era comum dar chá, suco e água para recém-nascidos. O pediatra resolveu investigar se isso teria influência no número de óbitos e fez um estudo em 10 cidades do Rio Grande do Sul. O resultado foi impressionante. As crianças que eram alimentadas exclusivamente com leite materno até os 6 meses de vida tinham risco 14 vezes menor de morrer por diarreia e 3,6 vezes menor, por doenças respiratórias.
Graças a essa descoberta, depois confirmada por outros pesquisadores que repetiram o estudo em vários países, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) reviram as recomendações sobre aleitamento exclusivo até os seis meses de vida.
Segundo o médico, existem algumas hipóteses que explicam a associação entre a oferta de água, suco e chá aos bebês e o aumento nos casos de morte. ;Em primeiro lugar, a mortalidade maior era nas famílias mais pobres, que não tinham acesso a saneamento. A má higienização da água poderia introduzir bactérias e contaminar os bebês. Além disso, o estômago do recém-nascido é muito pequeno, do tamanho de uma colher de sopa. Ao ingerir mais líquido, ele mama menos e deixa de receber todas as substâncias do leite materno que evitam infecções;, diz.
A teoria dos 1.000 primeiros dias
Novo foco
Para o membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e coordenador da Pediatria do Hospital Santa Lúcia, Alexandre Nikolay, o reconhecimento internacional do trabalho de Cesar Victora é mais do que justo. ;Os estudos de coorte são muito respeitados, levam bastante tempo para serem feitos e, para fazê-los, é preciso ser um pesquisador muito apaixonado e dedicado. O embasamento científico dessas pesquisas epidemiológicas são fundamentais para que a clínica médica se desenvolva; todas as medidas clínicas são baseadas nos estudos;, destaca.