Ciência e Saúde

Aryon Rodrigues: "existem mais de 200 línguas e só se ensina português"

Marcela Ulhoa
postado em 09/12/2012 07:30
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Há cerca de 50 anos, um pequeno grupo de jovens intelectuais chegava à recém-criada capital do país com um desafio sem igual. Em meio à terra vermelha de uma cidade em construção, tinham a missão de erguer os pilares de uma nova forma de pensar o ensino superior no país. Queriam não só criar uma universidade para Brasília, mas que ela fosse a melhor e mais importante da América Latina. Sonhavam que ela fosse livre, sem censuras e que integrasse as várias áreas do conhecimento. Para alguns dos cerca de 200 professores que participaram da criação da UnB, o sonho e o querer não podem ser conjugados no passado. Os jovens de 20 e poucos anos de outrora hoje são senhores na casa dos 80 anos que, por sorte, são incansáveis.

O Correio preparou uma série de quatro reportagens que traça o perfil de professores que chegaram à UnB ainda em 1962, a maioria a convite de Darcy Ribeiro, e que ainda hoje levam adiante a utopia de uma universidade em ebulição. O linguista Aryon Rodrigues, o artista plástico Glênio Bianchetti e o arquiteto Luis Humberto, cujas histórias são contadas nos três primeiros dias, até hoje atuam na instituição que ajudaram a erguer. Na última matéria da série, será mostrado o que fazem agora outros desses mestres, como o físico Roberto Salmeron; o arquiteto João Filgueiras Limas, o Lelé; e o matemático Marco Antônio Raupp, atual ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação. Eles são uns dos poucos que trazem mais do que a lembrança da genialidade do plano educacional de Anísio Teixeira, o vigor político de Darcy e a convivência com Oscar Niemeyer, que traçou alguns prédios da universidade. Cada um, em sua área de atuação, dá aulas, milita, faz palestras, pesquisa e sonha com um Brasil crítico e educado.



;Professorzinho, a equipe de reportagem chegou.; É assim, usando o diminutivo carinhoso, que a professora Ana Suelly Cabral anuncia a equipe do Correio àquele que considera o seu grande mestre e amigo: o linguista Aryon Dall;Ígna Rodrigues. Aos 87 anos, Aryon caminha com passos lentos marcados pelo tempo, mas o pisar firme é de quem cultiva forte a vontade de seguir, ;enquanto tiver fôlego;, na busca pelo conhecimento. É no subsolo do ICC Sul da Universidade de Brasília (UnB), em uma pequena sala repleta de objetos indígenas, que o professor, com seus claros olhos azuis, conta um pouco da trajetória de mais de 70 anos dedicados ao estudo das línguas indígenas no Brasil. Paciente e tranquilo, ele esmiúça sua peculiar história com a UnB, aonde chegou em 1962, a convite de Darcy Ribeiro. Ainda hoje ativo, Aryon, que carregava o reconhecimento de professor emérito desde 1996, recebeu no fim de outubro a maior honraria acadêmica da instituição de ensino, o título de doutor honoris causa.

;Eu fui um dos cientistas que vieram para começar a discutir a criação da universidade, no começo dos anos 1960. Nessa época, eu já tinha voltado do meu doutorado na Alemanha e era professor de linguística e de etnografia do Brasil na Universidade Federal do Paraná;, conta. A ida para a UnB coincidiu com os primeiros rabiscos que davamforma ao sonho de Darcy Ribeiro de construir a mais importante universidade da América Latina na nova capital. Encarregado do planejamento da instituição de ensino, Darcy, então vice-diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), no Ministério da Educação, reuniu uma equipe de sua confiança para ditar as principais diretrizes. Ao linguista paranaense coube idealizar o curso tronco de letras brasileiras.

Desde o princípio da criação dos cursos, Aryon se opôs à separação dos cursos de letras e ciências humanas. ;Como se uma coisa não tivesse nada a ver com outra;, critica. Ele conta que o projeto apresentado inicialmente pela UnB juntava as duas áreas do conhecimento, mas uma série de fatores levou ao modelo atual de separação dos campos, o que, para ele, é uma perda imensa.

Humildade
Passados 50 anos, apesar da aposentadoria compulsória, o professor é visto quase todos os dias nos corredores da universidade ou na sala do Laboratório de Línguas Indígenas (Lali), centro de pesquisa de pós-graduação criado por ele em 1999. O que omotiva a continuar depois de tanto tempo? ;O gosto por esse trabalho que eu faço. Para mim, é uma satisfação.; Para a felicidade daqueles que o rodeiam, Aryon não para. Dá aulas, orienta projetos de pós-graudação e é responsável pela formação de uma nova geração de linguistas, como a sua pupilo, a professora Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP).

;O professor Aryon Dall;Ígna Rodrigues foi a pessoa mais importante na minha vida acadêmica. Porque eu tive outros excelentes professores, mas foi ele que realmente deu tudo de si parame formar e continua dando até hoje. É o meu grande mestre. Eu o considero uma sumidade, a maior competência em línguas indígenas no Brasil;, declara Ana Suelly. Apontada por Aryon como sendo a sua ;equipe;, a professora é uma das principais responsáveis por passar os ensinamentos do mestre adiante. Apesar de trabalhar diretamente com o linguista há mais de 10 anos e compartilhar a autoria de alguns trabalhos e coordenação de projetos, Ana Suelly considera-se sua eterna aluna.

Entre as características mais louváveis do professor, a humildade é a primeira a aparecer na boca daqueles que convivem diariamente com ele. Os vários títulos acadêmicos, o reconhecimento internacional e as obras de referência estão longe de subir à cabeça de Aryon, que recebe o reconhecimento, em suas palavras, com ;tranquilidade;. ;O professor é uma pessoa de extrema sensibilidade, humanidade, talvez o homem mais humano que eu tenha conhecido;, elogia Ana Suelly. Ao vê-lo no alto de seus 87 anos, sua maior discípula tem um único desejo: saúde, para
que ele ainda viva muito. ;A gente sem ele; Não só por nós, mas pelo papel político que ele tem no Brasil. De todos aqueles que estão representando poderes no âmbito das línguas indígenas, ninguém tem o seu conhecimento e o desprendimento de olhar para as políticas sem visar a interesses próprios. Ele está sempre olhando para a ciência e para os beneficiários, que são os índios.;

Acolhimento
Divorciado e pai de três filhos, o professor mora com um indígena do Xingu, que veio a Brasília para fazer mestrado no Lali. Faz quase um ano que Kaman, índio da etnia kalapalo, mora com Aryon. ;Estou gostando muito. Ele não esconde que eu moro com ele, fala que eu não faço bagunça lá. Eu o considero meu segundo pai, porque ele me colocou na casa dele.; A maioria dos índios que saem de suas aldeias e chegam à UnB encontra dificuldade para se manter na cara capital. É por isso que Aryon já abrigou vários deles. A única coisa que o desagrada, entretanto, é o excesso de cuidado. ;Tem gente que faz companhia, mas tem gente que quer tutelar. Aí eu não gosto;, diz o professor.

Como Kaman, muitos indígenas chegam ao Lali com o sonho de se tornarem cientistas e dominarem o conhecimento da morfologia, da fonologia e da sintaxe de suas línguas nativas. É o caso de Wary Kamaiurá Sabino, aluno de doutorado do laboratório. ;O maior objetivo que nós temos, como indígenas, é que não se perca nossa língua. Graças a ele (Aryon), a gente aprendeu a escrever a língua indígena;, revela Wary.

A formação de cientistas indígenas é uma das principais bandeiras levantadas por Aryon, que anseia ver crescer em seu laboratório alunos e colegas como Kaman e Wary. ;Infelizmente, muitos linguistas não gostam do nosso trabalho, têm o pensamento primário de que, se ensinarmos para os índios, o que vai sobrar para a gente? Querem usar o índio somente como informante e deter o conhecimento da língua indígena;, lamenta Aryon. Apesar dos entraves e dificuldades, ele continua lutando pelo espaço dos indígenas na universidade e é um dos principais fomentadores de projetos que defendem a inclusão das 200 línguas nativas nos currículos dos cursos de letras. Assim, acredita, o país poderá conhecer um pouco mais a sua própria diversidade cultural.

;Eu fui um dos cientistas que vieram para começar a discutir a criação da universidade, no começo dos anos 1960. Nessa época, eu já tinha voltado do meu doutorado na Alemanha e era professor de linguística e de etnografia do Brasil na Universidade Federal do Paraná;, conta. A ida para a UnB coincidiu com os primeiros rabiscos que davam forma ao sonho de Darcy Ribeiro de construir a mais importante universidade da América Latina na nova capital. Encarregado do planejamento da instituição de ensino, Darcy, então vice-diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), no Ministério da Educação, reuniu uma equipe de sua confiança para ditar as principais diretrizes. Ao linguista paranaense coube idealizar o curso-tronco de letras brasileiras.

Desde o princípio da criação dos cursos, Aryon se opôs à separação dos cursos de letras e ciências humanas. ;Como se uma coisa não tivesse nada a ver com outra;, critica. Ele conta que o projeto apresentado inicialmente pela UnB juntava as duas áreas do conhecimento, mas uma série de fatores levou ao modelo atual de separação dos campos, o que, para ele, é uma perda imensa.

O professor Aryon Rodrigues na década de 1960

Aryon Rodrigues com sua discípula, a professora Ana Suelly Cabral, do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP) da UnB

O professor Aryon Rodrigues e alunos indígenas do Laboratório de Línguas Indígenas, centro de pesquisa de pós-graduação criado por ele em 1999

Aryon Rodrigues com alunos na UnB, em 2007

Aryon Rodrigues recebe o título de doutor honoris causa da UnB

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Trajetória - Aryon Rodrigues:

1950: Gradua-se em letras clássicas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

1959: Termina o doutorado em linguística pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha

1960: É professor de linguistica e de etnografia do Brasil na UFPR

1962: É chamado por Darcy Ribeiro para ser consultor do Instituto de Letras da UnB, cuja criação estava sendo estudada sob a coordenação do escritor Ciro dos Anjos

1963: Torna-se professor efetivo da UnB, após encerrar as obrigações com a UFPR

1964: Quatorze meses após a sua chegada à UnB, ocorre o golpe militar de 1964. Iniciam-se as repressões à Universidade, tida como subversiva pelo regime militar

1965: Em função das duras ações da ditadura militar, Aryon e demais professores da instituição se reunem decidem se demitir, como tentativa de salvar a UnB. São protocolados na Reitoria 225 pedidos de demissão. Terminado o aviso prévio, Aryon Rodrigues segue para o Uruguai, onde participa de cursos no Programa Interamericano de Linguistica

1967: Organiza o Programa de Pós-Graduação em Linguística do Museu Nacional do Rio de Janeiro e colabora, um ano depois, com Roberto Cardoso de Oliveira na criação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social no mesmo museu

1973: Sai do museu e vai para a Unicamp, onde reorganiza a pós-graduação em linguística e se torna coordenador de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

1977: É o primeiro coordenador do recém-criado Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

1988: Reintegra-se à UnB como professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP)

1996: Ganha o título de professor emérito pela Universidade de Brasília

1999: Cria o Laboratório de Línguas Indígenas da UnB

2012: Recebe a maior honraria acadêmica da UnB: o título de doutor Honoris Causa

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