Dois cientistas de Brasília receberam ontem, em Washington, nos Estados Unidos, o prêmio mais importante sobre saúde pública nas Américas. Oferecido pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), o Fred L. Soper à Excelência em Literatura sobre Saúde Pública reconheceu, neste ano, como o melhor trabalho publicado no meio científico especializado o estudo Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, de autoria do economista e sociólogo Marcelo Medeiros e da antrópologa Debora Diniz, ambos professores da Universidade de Brasília (UnB). Entre os méritos do trabalho, financiado pelo Ministério da Saúde, está a identificação da magnitude do aborto no país.
Constatou-se de forma confiável, pela primeira vez no Brasil, que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já interrompeu a gravidez ao menos uma vez na vida. Metade delas teve de ser internada. “Esses resultados tiraram o debate de uma discussão moral para uma constatação científica, colocando-o na pauta da saúde pública”, diz Medeiros. Até então, não havia estatística confiável sobre o assunto. Costumava-se usar o número de 200 mil curetagens feitas no SUS por ano, multiplicando-as por cinco para estimar o fenômeno do aborto. “O dado era frágil, obtido por um método indireto. Nosso estudo funciona como uma pedra fundamental nesse tema porque traz um dado definitivo e uma metodologia confiável”, explica Debora.
A metodologia foi o item mais trabalhoso na pesquisa, que durou dois anos. Era preciso convencer as mulheres a contar se fizeram aborto, um tema delicado por si só, ainda mais em um país onde a prática é considerada crime. Dessa dificuldade surgiu a ideia de usar a técnica de urna. As entrevistadas respondiam a um rápido questionário sociodemográfico oral e, depois, nos moldes de uma eleição, recebiam uma cédula com cinco perguntas específicas a respeito da interrupção da gravidez. Preenchiam o papel e o depositavam na urna vedada. Explicando assim, pode até parecer uma metodologia simplória, mas, na prática, as dificuldades começaram bem antes do trabalho de campo, que alcançou 2 mil entrevistadas em todo o Brasil, exceto em uma parte da área rural.