postado em 27/03/2015 09:40
Em 8 de abril de 1971, o Correio noticiou o nascimento do primeiro ceilandense. A reportagem era pequena, não cobria nem um quinto da página do jornal. Mesmo assim, dona Maria Eliete Melo da Ponte a guardou com carinho, num álbum de fotografias da família, desses simples, tamanho 10x15cm, que ainda são distribuídos nas lojas de revelação de fotos. O amarelado do papel e os pequenos rasgos não foram por falta de cuidado, ela garante. A recordação apenas não resistiu ao longo período que separa o momento registrado ali e os dias de hoje.
O bebê que aparece na foto é Clébio Dalton Melo Pontes. No dia 2 do mesmo mês, a mãe dele começou a sentir as dores do parto dentro de uma igreja que já tinha estrutura improvisada. Ela e o resto da família se abrigavam no local até que o barraco de madeira que trouxeram da Vila do IAPI ficasse pronto. Mas Clébio não quis esperar, e nasceu naquele dia, pesando mais de três quilos. Eliete foi levada por assistentes sociais ao hospital de Taguatinga, já que Ceilândia, inaugurada há poucos dias, ainda não tinha estrutura hospitalar ou de qualquer outro tipo. Lá, deu à luz o menino e no mesmo dia já estava de volta à cidade. O barraco de tábuas de madeira a esperava, todo montado, na QNM 23, Conjunto L, Lote 44.
Eliete recebeu a visita da primeira-dama, dona Vera de Almeida Silveira, mulher do governador da cidade, Hélio Prates da Silveira. No primeiro momento, nem se importou com a badalação, só se sentiu importante mesmo depois que viu a notícia no jornal. Para a menina que foi deixada pelos pais e criada por uma tia, ver a história ser contada a todos os brasilienses naquele abril de 1971 foi um dos momentos mais importantes de que tem recordação. ;Foi tão especial... Foi a primeira vez que eu tive uma atenção especial;, relembra. ;Passei por momentos tão difíceis na minha vida que, quando eu tive essa oportunidade, achei que era uma coisa muito importante para mim, e guardei isso para um dia mostrar para ele (Clébio).;
Separação
Quando o menino nasceu, ela tinha 21 anos e lembra que o barraco era de chão batido. ;Eu nunca reclamei. Para mim, era tudo normal, aquilo ali ia passar e os dias seguintes seriam melhores;, conta. Clébio é o filho caçula de Eliete e de Joaquim Manoel da Ponte, pais também de Clerton, 48 anos, e de Cléves, 44, a filha do meio. Joaquim era comerciante no Ceará quando decidiu vir para Brasília trabalhar na construção da cidade, no fim da década de 1950, e trouxe a mulher, que tinha menos de 14 anos quando se casou. Logo que Ceilândia começou a ser construída, a família se mudou para lá.
Joaquim era alcoolista e viajou algumas vezes com os filhos para o Nordeste. Em uma dessas ocasiões, um dos irmãos dele, José Manoel da Ponte, e a cunhada viram que ele não estava em condições de cuidar das crianças e ficaram com Clébio, o mais novo, que mal engatinhava. O primeiro ceilandense passou, então, a ser criado pela família adotiva, e nunca mais voltou ao Planalto Central.
Durante a infância, viveu na cidade de Ubajara, a 400km de Fortaleza. Mudou-se para a capital para servir a Aeronáutica. Hoje, tem 43 anos e trabalha como representante de vendas. O filho dele, José Joaquim, de 4 anos, foi batizado em homenagem ao pai adotivo e ao biológico, que morreu quando ele tinha mais ou menos 13 anos de idade. Clébio tem ainda uma enteada, de sete anos.
;Quando vim conhecer minha mãe (biológica) foi aos 21 anos de idade. Meus irmãos também, quase no mesmo período;, conta Clébio. Os dois só se viram mais uma vez depois desse primeiro encontro, ambos no Nordeste. Ele ainda não voltou ao Distrito Federal, mas não foi por falta de convite, garantem os familiares. Pretende fazer isso quando conseguir organizar um período de férias.
;Eu tenho saudade dele, tenha vontade que ele venha aqui visitar o resto da família, os primos que ele não conhece;, diz dona Eliete, que está com 63 anos e mora em Sobradinho II. Depois da morte do marido, ela conseguiu um emprego de telefonista na Secretaria de Cultura e Esporte. Além dos três filhos com Joaquim, ela tem três de dois relacionamentos posteriores. Andevaldo, 40, é cantor sertanejo e usa o nome artístico Pedro Paulo, da dupla com Matheus. Roberto é o caçula, de 28 anos, e Herber Ricardo tem 33.
Mudanças
A cidade onde Clébio nasceu está irreconhecível. A infinidade de barracos deu lugar a casas de alvenaria. São 121,6 mil, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) de 2013. Os cerca de 80 mil moradores que foram removidos, em 1971, da Vila do IAPI, da Vila Tenório, da Vila Esperança, da Vila Bernardo Sayão, do Morro do Querosene e de outras áreas na Campanha de Erradicação das Invasões (CEI) ; que deu nome à cidade ; somam hoje quase 600 mil.
Aos poucos, a região administrativa cresceu e, hoje, é dividida em Ceilândia Centro, Ceilândia Sul, Ceilândia Norte, P Sul, P Norte, Setor O, Expansão do Setor O, QNQ, QNR, Setores de Indústria e de Materiais de Construção e parte do Incra (área rural da região administrativa), Setor Privê e condomínios que estão em fase de legalização, como o Pôr do Sol e o Sol Nascente.
Quarenta e quatro anos se passaram e, agora, Ceilândia pertence aos filhos que nasceram e foram embora, aos que ficaram e não a deixam nem por decreto e aos que a adotaram de coração. É a Ceilândia do Seu Altino, da Jemima, da Kelly e da Madalena, da Gina, do Breitner, da Nanci, do Roberto, do Alan, dos Sérgios, do Sidney, do Luan, do Adirley, do Célio, da Ana Paula e do Tino, do José, da Simone, do Cristiano, de outra Kelly, do Luiz, da Eliane, do Francisco, do Márcio, do Ricardo, do Lucas e da Natália. São as pessoas que ajudam a contar a história diária de conquistas e de união de todos os moradores da região administrativa mais populosa do DF e que o Correio volta a homenagear no aniversário da cidade.