postado em 19/12/2012 21:51
José NegreirosEle se despediu de mim há duas semanas. Recostado na poltrona da sala, pediu que eu fechasse a janela, pois sentia frio. Enquanto as outras pessoas jogavam gamão, seu esporte preferido, fomos recortados por uma fumaça invisível, de forma que ninguém nos ouvia. Eram cinco, seis da tarde quando ele aninhou-se e começou a falar em forma de depoimento para um curta sobre o amor ; jamais gravado. Fez um balanço da vida dos filhos.
"Santiago trabalha no que gosta, Dudu está muito bem, Bruno passou no concurso da Petrobras e hoje me apresentou a namorada e João Pedro foi aprovado no teste do Colégio Cruzeiro, do Rio. Estão todos muito bem acolhidos pela vida. Pode haver maior felicidade?", me mirou. Ouvi durante duas horas. Só ele falou. Era uma mistura de sonho, delírio, memória, silêncio, declarações. "Tenho que me manter aqui sem me lamentar, sem deixar uma lágrima escorrer." Deu um leve sorriso, os olhos úmidos, a voz abafada pela respiração.
Eu tinha 20 e ele uns dez anos quando fui adotado afetivamente por sua família. No fundo ainda éramos duas crianças. Rapidamente, porém, apareceu no Zé aquele fotógrafo improvável, determinado, louco para sair pelo mundo enquadrando. Consegui seu primeiro emprego, no velho "Jornal do Brasil", em cuja primeira página brilhava com fotos da política que estava em cartaz no tempo da ditadura.
O irmão que ganhei nesta viagem virou adulto como num clipe ; cresceu, casou-se, teve filhos, viajou, mudou-se e no início dos anos 90, como todo craque, foi jogar no time do seu coração, o Botafogo, leia-se "Correio Braziliense". Aqui, onde entramos em campo juntos várias vezes, cristalizou a carreira com os gols e títulos que lhe valeram inúmeros prêmios ao atuar em todas as posições, da defesa ao ataque, até chegar a treinador, quase integrante da diretoria. Foi muito feliz. "Dali só pra a Broadway", diria uma amiga, excelente cantora anônima.
Além da obsessão fotográfica, certa vez mostrou-me outro talento extraordinário: um texto que me deixou em pânico. Havia ali um escritor muito melhor do que eu, que não sei fotografar. Era uma carta que enviaria ao pai, relatando que se descobrira igual a ele: na escrivaninha, entre coisinhas e guardados, afetos e botões soltos, um velhinho fazendo um recenseamento de objetos pequenos demais para terem alguma utilidade.
Que magnífico personagem era José, com a barba longa do bisavô que lutou na Guerra do Paraguai, ouvindo Chet Baker, que cantava com voz de criança e tocava com bochechas de fera. Só os arrebatadores versos de "Funeral Blues", do maior poeta inglês do século passado, W. H. Auden, para retratar a beleza desse menino que nos deixa tão cedo falando de amor. É aquele texto declamado pelo personagem Matthew na cerimônia de despedida do seu companheiro, Gareth, em "Quatro Casamentos e um Funeral":
Ele foi meu norte, meu sul, meu nascente, meu poente / Foi o labor da minha semana, meu domingo indolente / Foi meu dia, minha noite, meu falar e meu cantar
(...)
Fique o céu todo apagado / Empacotem e embrulhem a lua; seja o sol desmantelado / Esvaziem os oceanos, do mundo sejam as florestas varridas / Porque agora, para mim, nada resta de bom nesta vida.
José Negreiros é jornalista.