Ao longo de 10 anos, pai, mãe e cinco filhos confiaram na amizade e no caráter do padre Evangelista Moisés de Figueiredo, 49 anos. Tanto o religioso quanto os paraibanos chegaram à região do Tororó, próximo a São Sebastião, em 2002. O chefe da família, José*, um pedreiro de 32 anos, pensou que, ao se aproximar do sacerdote local, seria aceito com mais facilidade pela comunidade, que lotava as missas conduzidas pelo religioso na Paróquia São Francisco de Assis. Em dezembro passado, porém, a amizade se transformou em desgosto. As duas meninas mais velhas, de 12 e 13 anos, revelaram a uma tia que eram abusadas pelo padre. Os outros três irmãos e mais uma vizinha também teriam sido vítimas. O religioso foi preso no mesmo mês.
Evangelista e a família de José dividiam um grande terreno, onde havia uma mansão e duas casas menores: uma ao fundo, ocupada pelo padre; e outra próxima à entrada do lote, onde vivem o pai; a mãe, Lúcia*; e os cinco filhos. O trato com o dono da propriedade era de que eles poderiam viver ali se cuidassem do local. Evangelista acabara de assumir a paróquia e estava construindo uma casa em um condomínio dos arredores.
A aproximação entre os vizinhos foi natural. E o convívio entre eles se tornou intenso. Três das crianças foram batizadas por Evangelista no mesmo dia. Um grande almoço deu sequência ao batismo. Na ocasião, padre e pedreiro partilharam da primeira garrafa de cerveja. Sendo assim, Evangelista se tornou assíduo na casa da família. Ficava para almoçar, tomar um trago. A confiança da parte de José era tanta que o religioso até dormiu no quarto com três das filhas.
Depois que ele se mudou para o condomínio, a três quilômetros da chácara, por diversas vezes pernoitou na casa de José. ;Quantas vezes ele não veio bater aqui depois de beber e pediu para dormir? Tinha dia que eu saía de casa e ele estava deitado no sofá. Quando voltava, o encontrava do mesmo jeito;, relembra. Do passado do pároco, pouco sabiam. Ele nunca disse mais do que ;se eles soubessem o que já tinha feito, ficariam de queixo caído;, diz José.
Lúcia, por sua vez, estranhava o excesso de proximidade entre Evangelista e os filhos. Por várias vezes, o homem levou as meninas para o cerrado para brincar de pique-esconde ou fazer trilha. Se demorasse muito, a mãe chamava os filhos. Não gostava da mania de Evangelista de segurar as crianças no colo, hábito do qual ele se desfazia sempre que José aparecia. Apesar de tudo, ele era querido pela família e pelos moradores da região. Agradava com presentes, dinheiro para remédios, material escolar e uniforme para as crianças.
Medo
Mas o homem que representava a Igreja Católica na comunidade do Tororó era temido pelas meninas de José. Elas contam que desde 2009, após seis anos de convívio, ele começou a acariciá-las. As insinuações aconteciam na casa delas e na dele, onde o religioso guardava uma arma, vista com frequência pelas garotas.
Primeiro, ocorreram toques. Aos poucos, Evangelista transgredia os limites. Para que as duas irmãs mais velhas ficassem caladas, o padre dava roupas e fazia ameaças. ;Ele falava que, se a gente contasse o que acontecia para os nossos pais, ele ia tirar a nossa família dessa casa. Eu ficava com medo, porque, se sairmos daqui, não temos para onde ir;, contou a adolescente de 12 anos.
Um dia, relataram as meninas, ele disse a elas que procurassem preservativos em algum lugar da casa dele. ;Ele falava como se fosse normal e como se a gente estivesse à vontade. Outras vezes, colocou vídeo pornô no celular e no computador. Disse que a gente precisava aprender, que a gente era muito boba;, detalhou a irmã mais velha.
O olhar de José fica distante ao escutar as filhas contando essas e outras histórias. Ele diz sentir culpa por não ter percebido antes e alívio por não ter feito justiça com as próprias mãos. A fé se manteve inabalada. Mas não deve nunca mais colocar os pés na Paróquia São Francisco de Assis. ;Espero que ele (o padre) fique preso muito tempo.;
Amigo surpreso
O padre conhecido pelo serralheiro Valdir de Sousa Ribeiro, 38 anos, pouco se assemelha ao homem cabisbaixo, silencioso e rodeado por policiais. Os dois se tornaram amigos há mais de seis anos, quando Evangelista chegou à Paróquia do Divino Espírito Santo, na 905 Norte. Valdir mora no mesmo terreno, com a mulher e os dois filhos, de 6 e 14 anos. Quando soube da denúncia, a primeira coisa que fez foi perguntar à companheira e à filha mais velha se as duas haviam sofrido algum tipo de abuso por parte do padre. A resposta foi negativa.
Para ele, que mantém relacionamento próximo com o religioso, é muito difícil acreditar nas acusações. ;Acho que tem alguma coisa por trás disso aí. Ele não pode ficar preso só com base no que as pessoas disseram. Algemá-lo daquele jeito? Ele está sendo humilhado;, disse. Valdir espera que o caso seja apurado e tem certeza de que o amigo, com quem pescou e brindou muitas vezes durante os oito anos de convívio, vai provar a inocência.
* Os nomes são fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
Palavra de especialista
;Mudança de comportamento;
;Não existe um perfil ou estereótipo de um abusador. A pessoa pode ser um trabalhador, pode estar dentro na igreja, dentro da família das vítimas. O abuso é, antes de mais nada, uma relação de poder entre o adulto e a criança. O adulto começa com a violência psicológica. Amedronta, utiliza do sentimento de amizade e do carinho que tem sobre a vítima para cometer o crime. Por isso, é importante que os pais estabeleçam uma relação de confiança e dialoguem com os filhos em um linguajar que não assuste e não provoque medo. Na medida em que a criança cresce, é possível detalhar mais sobre o assunto. É muito importante que os responsáveis acreditem nas crianças, já que, em praticamente todos os casos, elas só vão falar de um abuso se tiverem vivenciado essa situação. Os pais precisam acreditar, investigar e, se notarem esse problema, procurar o Conselho Tutelar para notificar a situação. Uma vítima acolhida e protegida tem a possibilidade de superar o ocorrido com mais facilidade. Não há um comportamento padrão para identificar crianças que estão sendo abusadas, mas é possível notar quando elas querem se afastar de alguém próximo, quando ficam tristes sem motivos aparentes ou quando têm mudanças bruscas de comportamento.;
Adriana Costa de Miranda, mestre em sociologia da violência pela Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro Conversando sobre a violência sexual com a criança
Para saber mais
Duas formas de crime
A violência sexual pode ocorrer de duas formas: por abuso ou por exploração. O abusador é quem comete a violência sexual, aproveitando da relação familiar, da proximidade social (como um professor ou um padre) ou da vantagem etária e econômica. Nem todo pedófilo é abusador, nem todo abusador é pedófilo. A pedofilia está no Código Internacional de Doenças, classificada como um transtorno de personalidade causado pela preferência sexual por crianças e adolescentes. Dessa forma, o pedófilo não necessariamente pratica o ato de abusar sexualmente de meninos ou meninas. O Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não preveem redução de pena ou da gravidade do delito se for comprovado que o abusador é pedófilo, mas juízes tendem a diminuir a pena dos pedófilos, entendendo que se trata de uma doença. Já a exploração sexual precisa envolver pagamento ou troca, isto é, a criança e o adolescente são vistos como mercadoria. Nesses casos, além do próprio agressor, existe a figura do aliciador, que age como intermediário. A exploração pode se dar por redes de prostituição, tráfico de pessoas, pornografia e turismo com finalidade sexual.
Ameaça às vítimas
Duas semanas antes de ser preso, em 30 de dezembro de 2011, o padre Evangelista Moisés Figueiredo teria feito ameaças às famílias de cinco das seis vítimas de pedofilia. Natural de Brejo Santo (CE), ele acabara de descobrir que os jovens haviam contado sobre os abusos a um familiar e que este havia feito uma denúncia ao Conselho Tutelar de São Sebastião. O caso parou nas mãos da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Os supostos abusados e o padre foram intimados a depor.
O religioso não chegou a receber a notificação, mas, segundo uma das adolescentes, ao tomar conhecimento dos fatos, ele telefonou para a casa da família e fez intimidações. ;Eu falei que contaria tudo o que ele estava fazendo com a gente. Foi então que ele disse que o que ;era do meu pai estava guardado e isso seria só o começo;;, contou a menina. As jovens prestaram depoimento, e a polícia os considerou consistentes. A partir do relato dos cinco irmãos, os agentes chegaram a uma sexta vítima, amiga das meninas. A Justiça concedeu, então, o mandado de prisão, 14 dias após o início da investigação. Agentes da DPCA e da Divisão de Operações Especiais (DOE) realizaram a detenção.
Complô
O delegado adjunto da DPCA, Rogério Borges Cunha, disse que a rapidez entre a denúncia e a prisão ocorreu em função do tipo de crime. ;São acusações graves e a sociedade cobra uma solução rápida;, justificou. Evangelista se declarou inocente de todas as acusações e alegou se tratar de um complô. Ele permanece detido no Departamento de Polícia Especializada (DPE). Ele foi indiciado por estupro de vulnerável e por porte ilegal de arma. No dia em que foi preso, uma cartucheira calibre .36 foi encontrada na casa do religioso. Se for condenado, pode receber uma pena de até 93 anos de reclusão
A defesa do religioso está por conta do departamento jurídico da Arquidiocese de Brasília. Já houve um pedido de habeas corpus, negado pela Justiça em 3 de janeiro. A entidade religiosa informou, por meio de nota, que acompanha o caso, mas não se pronunciará sobre o assunto. As atividades na Paróquia São Francisco de Assis estão sendo desenvolvidas por um padre interino.