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Justiça garante a transexual direito de retornar à reserva da Aeronáutica

Ela foi reformada, num processo que correu contra a sua vontade. Agora, a Justiça lhe garante o direito de retornar à reserva. Aeronáutica deve recorrer

postado em 29/01/2010 08:49
18 de maio de 2007: direito de mudar definitivamente o sexo e o nome na carteira de identidadeSão 10 longos anos de luta. Tempo suficiente para causar uma brutal mudança de vida. Mas a batalha ainda não terminou. Primeiro, o isolamento na caserna. E um parecer, do Alto Comando, a que o Correio teve acesso, em 2000, com exclusividade: ;Atrofia testicular por provável ação medicamentosa. Transexualismo;. E a decisão que a afastaria para sempre, depois de 22 anos de serviços prestados à corporação, com condecorações e medalhas: ;Incapaz, definitivamente, para o serviço militar. Não é inválido. Não está incapacitado total ou permanentemente para qualquer trabalho. Pode prover os meios de subsistência. Pode exercer atividades civis;.

Depois, com coragem sem precedentes, o enfrentamento contra o parecer. À procura por ajuda, ela bateu à porta do Ministério Público. O promotor Diaulas Ribeiro, da Promotoria de Defesa dos Usuários de Saúde (Pró-Vida), ouviu a sua história. Aceitou a luta. Começaram as consultas com psiquiatras. Laudos. Novos relatórios. Em 2005, a mais importante transformação de sua vida: a cirurgia de mudança de sexo. Ela virou o que sempre sonhou.

4 de abril de 2008: mais uma vitória, a identidade militar femininaEm 2007, a primeira grande vitória. A juíza substituta Lília Simone Rodrigues da Costa Viera, da 1; Vara de Família do Tribunal de Justiça do DF, numa sentença ousada, despachou: ;O sexo é atributo da personalidade, sendo dela parte integrante. Negando-se o direito de alguém ter o sexo correspondente ao órgão que possui é sonegar o direito de ser feliz, de ter esperança, de acreditar na vida, de viver com dignidade;.

Extremamente corajosa, a juíza continuou: ;Rechaçar o direito do requerente em ter o sexo alterado em seu registro civil é plasmar injustiça flagrante, pois o autor, conforme mencionado nos autos, sempre se sentiu mulher, se veste como mulher e, além disso, repito, já retirou a genitália masculina que possuía;. Desde aquele dia, estava reconhecido o direito de Maria Luiza da Silva ; nome que escolheu antes mesmo da cirurgia ; pertencer ao sexo feminino.

Mas ainda faltava a alteração no registro civil. Em 2007, a segunda vitória. O juiz substituto da Vara de Registros Públicos do DF, José Batista Gonçalves da Silva, acolheu a manifestação do Ministério Público e determinou a alteração do nome, como também a averbação à margem do assento de nascimento. Maria Luiza teve uma nova certidão.

Afastamento ilegal
A vitória mais recente foi publicada na quinta-feira, 21. É a que trata da volta aos quadros da Aeronáutica. Mesmo que na reserva, por questão da idade. A Justiça entendeu que o afastamento (leia-se reforma, aos 39 anos) da função de cabo foi ilegal. ;Quando eles me reformaram, chorei muito. Durante 22 anos, servi exemplarmente às Forças Armadas. Durante 22 anos, nunca tive uma punição na minha ficha. Recebi condecorações e certificados pelos bons serviços prestados à corporação;, diz Maria Luiza. E emenda: ;Todas as vezes que os médicos me perguntavam se eu queria ser reformada, eu dizia: ;Quero continuar a minha carreira, servir à Aeronáutica. É o que sei fazer e faço com muito orgulho;. Nada adiantou. Reduziram meu salário à metade e fui reformada por um ato preconceituoso;.

Na sentença, assinada pelo juiz Hamilton de Sá Dantas, titular da 21; Vara Federal, está escrito: ;Pela análise de toda essa documentação, acostada nos autos, fica evidente que a demandante, apesar do diagnóstico de transexual, tem perfeito domínio de suas faculdades mentais e psíquicas, não possuindo, portanto, nenhuma incapacidade para a vida profissional;.

Ela foi reformada, num processo que correu contra a sua vontade. Agora, a Justiça lhe garante o direito de retornar à reserva. Aeronáutica deve recorrerNo fim, Sá Dantas conclui: ;Com isso, a transexualidade, apesar de uma doença de transtorno psicológico, não gera nenhuma incapacidade permanente apta a justificar uma reforma, mesmo que na seara militar. Trata-se, sim de uma doença passível de tratamento e cura e não uma doença incapacitante;.

No meio da manhã de ontem, o Correio voltou à casa de Maria Luiza, um apartamento humilde (funcional) de dois quartos no Cruzeiro Novo ; onde ainda mora graças à força de uma liminar. De calça jeans, blusa decotada, tamancos pretos, unhas pintadas de vermelho, brincos e batom discreto, ela falou sobre a última decisão judicial.

Emocionada, com a voz baixa, disse: ;Desde que comecei na minha transformação, quis continuar na profissão. Fui impedida e humilhada. Hoje, com essa decisão, senti a minha dignidade resgatada. Mostra à sociedade que o mundo precisa ser revisto. Não se pode discriminar por orientação sexual. Eu sempre fui digna de pertencer aos quadros da Aeronáutica;.

Silêncio
A última decisão da Justiça Federal tira Maria Luiza da reforma e a coloca na reserva, com soldo igual aos militares nunca reformados. A cabo, entretanto, não voltará à ativa, em função da idade. Ela completou 49 anos. O tempo de serviço, 30 anos adotados nas Forças Armadas, já transcorreu. ;Me alistei com 18 anos. Toda minha vida me dediquei ao meu trabalho, que era de mecânica de avião. Fiz muitos cursos e, antes de ser reformada, eu já ensinava o que sabia. Entendo a questão da idade, mas ainda sou perfeitamente capaz para o trabalho;, reflete.

Para o advogado de Maria Luiza, Luís Maximiliano Telesca, de 35 anos e há sete à frente dos processos, a decisão favorável é uma inédita vitória. ;É uma sentença histórica do judiciário. Ele reconheceu que um transexual está apto a exercer a vida militar;. Telesca informou, ainda, que, como cabe recurso à ação, a Aeronáutica, muito provavelmente, recorrerá a instâncias superiores.

Procurada pelo Correio, a Aeronáutica, por meio do Centro de Comunicação Social, disse que, até que seja transitado em julgado (já que cabe recurso), a instituição não se manifestará. Enquanto aguarda mais uma batalha, Maria Luiza, o primeiro caso de transexualismo nas Forças Armadas do país, continua fazendo palestras para o grupo de transexuais (homens e mulheres) atendido no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Vai à missa todo domingo (é devota da Virgem Maria), pinta quadros e tira fotos com sua máquina analógica. Fotografas flores por onde passa. ;Sempre gostei de fotos, desde adolescência;.

Folheando a sentença do juiz (mais uma), ela confessa: ;Sempre quis um recomeço de vida, ser feliz. Nunca me senti homem. Passei a minha vida toda contrária ao meu sentimento. Esse documento é mais uma prova de que a luta não foi em vão. E pode ser a luta de muitas outras pessoas;.

Mesmo tendo direitos assegurados, Maria Luiza não voltará à ativa: agora, pela idade. Enquanto aguarda mais uma sentença, ela se dedica a um novo passatempo, a fotografiaPara saber mais
Sofrimento psíquico
Transexualidade é uma condição clínica em que se encontra um indivíduo biologicamente normal e que, segundo sua história pessoal e clínica e de acordo com o exame psiquiátrico, apresenta sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático. Portanto, um indivíduo que se encontra nessa condição tem uma autoimagem invertida e, por isso se sente diferente (espécie/gênero) daquilo que fisicamente o representa (sexo/órgão). Pessoas nessa situação padecem de profundo sofrimento psíquico. No caso de Maria Luiza, que nasceu J.C., ela nunca aceitou a genitália masculina. Alguns pacientes acreditam que houve, de fato, na concepção, um erro na determinação do sexo anatômico. Muitos deles buscam a cirurgia para mudança de sexo. Em casos extremos, alguns se automutilam. Outros, desesperados, chegam ao extremo do suicídio.

A Organização Mundial de Saúde considera a transexualidade e o transgenerismo patologias mentais, chamadas Transtornos de Identidade de Gênero na classificação Internacional das Doenças (IC-10). O diagnóstico é feito por psiquiatras ou psicólogos, por meio de várias conversas com o paciente, para determinar corretamente os sentimentos dele. Depois, são emitidos laudos que atestam o transtorno.

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