Jornal Correio Braziliense

INOVAÇÃO

Projeto usa implante de células de combustível para abastecer dispositivos médicos

Tecnologia serve para abastecer dispositivos médicos, como bomba de insulina e marcapasso. Cientistas da Suíça cogitam que os usuários também conseguirão carregar o próprio smartphone

Para regular os níveis de açúcar no sangue, há pessoas com diabetes que precisam de dispositivos eletrônicos que liberam insulina. Mas as bombas e outros equipamentos biomédicos conectados diretamente ao corpo de um paciente, como os marcapassos, demandam baterias descartáveis ou recarregáveis como fonte principal de energia. Em busca de alternativas, uma equipe de pesquisadores da ETH Zurich, em Basel, Suíça, colocou em prática uma ideia aparentemente transformadora: eles desenvolveram uma célula de combustível implantável que usa o excesso de açúcar no sangue para gerar energia elétrica e monitorar continuamente os níveis de glicose.

Os dispositivos bioeletrônicos atualmente disponíveis consomem muita energia para serem operados continuamente, avaliam os cientistas do Departamento de Ciência e Engenharia de Biossistemas da universidade suíça. Por isso, um gerador de energia elétrica implantável, autossuficiente e que funcione em condições fisiológicas seria transformador para muitas aplicações, como próteses bioeletrônicas e reguladores de metabolismo. Além disso, a tecnologia, apresentada na revista Advanced Materials, seria uma forma de aproveitar os excessos de energia disponíveis no organismo em forma de açúcar, ressaltam.

"Nos países industrializados, comemos demais e nos movimentamos muito pouco, de modo que o excesso de energia metabólica é armazenado como gordura corporal", afirma Martin Fussenegger, principal autor do estudo. "A ideia é eliminar o excesso de energia metabólica convertendo-o no formato de energia sustentável número um dos países em processo de industrialização: a eletricidade", completa. O pesquisador diz que essa energia poderá ser usada, inicialmente, para carregar dispositivos médicos vestíveis e, depois, dispositivos portáteis, como telefones celulares.

José Roberto Leite, doutor em bioquímica e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), explica que uma célula de combustível é um dispositivo eletroquímico que converte a energia química contida nas moléculas em energia elétrica. "Há algum tempo, a humanidade consegue produzir energia a partir do açúcar", diz. "No caso da célula de combustível, o processo é eletroquímico, e a quebra de glicose gera diretamente energia elétrica, como uma bateria microeletrônica."

No coração da célula criada pela equipe suíça, há um eletrodo feito de nanopartículas à base de cobre que, de acordo com o pesquisador brasileiro, funciona basicamente como uma pilha nanotecnológica: "Essas nanopartículas dividem a glicose em ácido glucônico e em um próton para gerar eletricidade, que aciona um circuito elétrico", explica.

Envolta em um tecido revestido com alginato, uma espécie de açúcar de algas aprovado para uso médico, a célula de combustível se assemelha a um pequeno saquinho de chá e pode ser implantada sob a pele. "O alginato absorve o fluido corporal e permite que a glicose passe do tecido para a célula de combustível interna, uma ideia original e genial", diz Leite.

Fussenegger explica que o alginato não está envolvido na produção de energia elétrica, mas serve como uma cobertura biocompatível da célula de combustível, evitando que ela seja rejeitada pelo corpo após o implante. "Como o alginato é um hidrogel, ele ainda permite a difusão de fluidos corporais de e para as células de combustível metabólicas."

Equilíbrio

Os pesquisadores juntaram o novo dispositivo com células beta artificiais, capazes de, usando uma corrente elétrica, imitar as estruturas naturais humanas que produzem insulina. Assim, combinando geração sustentável de energia e administração controlada do hormônio, o sistema tecnológico consegue manter a homeostase da glicose no sangue: quando a célula de combustível registra um excesso de glicose, ela começa a gerar energia. Essa energia elétrica é, então, usada para estimular as células a produzir e liberar insulina.

Acervo pessoal - Martin Fussenegger, principal autor do estudo e pesquisador da ETH Zurich

"A célula de combustível metabólica faz três coisas simultaneamente para manter a homeostase da glicose no sangue. A primeira é medir o açúcar em tempo real pela quantidade de eletricidade que produz, enquanto a segunda é converter o excesso de glicose em eletricidade e, assim, mantê-la em níveis normais", detalha o pesquisador da universidade suíça. "A terceira é que, a partir da eletricidade produzida, é possível estimular as células projetadas para liberar insulina, o que desencadeia a absorção da glicose sanguínea restante."

Uma vez que o açúcar volta para um valor normal, a produção de eletricidade e insulina é encerrada. Fussenegger enfatiza que a célula de combustível usa apenas o excesso de glicose, já que o organismo "morreria" se fosse removido todo o açúcar do corpo. "Também é importante observar que a glicemia é regulada automaticamente: se o nível de insulina aumentar, a glicemia diminuirá e a célula de combustível metabólico será desligada".

Testes em ratos

Inicialmente, o sistema foi testado em solução aquosa e meio de cultura de células contendo diferentes quantidades de glicose durante a medição da eletricidade. Depois, as células de combustível foram implantadas em camundongos com diabetes. Segundo os autores, os resultados foram promissores.

Para Denise Hissa, professora de biologia celular do Departamento de Biologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), o projeto é inovador. "Nossas células fazem uso de correntes de elétrons e de prótons o tempo todo, mas o estudo avança quando consegue converter essa energia metabólica em eletricidade. O método desenvolvido traz a vantagem de que dispositivos médicos do futuro tenham como fonte elétrica esse processo criado pelos pesquisadores", explica.

Fussenegger e colegas acreditam que a eletricidade poderá ser usada para alimentar marcapassos, neuroestimuladores, aparelhos auditivos, bombas de insulina, dispositivos vestíveis, como relógios inteligentes, e até portáteis, como smartphones. No caso de pessoas com diabetes, essa combinação permitiria, por exemplo, que um médico tivesse acesso remoto à célula implantada no paciente e fizesse ajustes necessários. "Queremos desenvolver ainda mais essa tecnologia, tornando-a mais eficiente em termos de energia, produzindo mais eletricidade, para que possamos iniciar os ensaios clínicos, com humanos, em um futuro não tão distante", adianta o autor do estudo.

*Estagiária sob a supervisão de Carmen Souza