A triagem auditiva neonatal (TAN), também chamada de teste da orelhinha, deve ser realizada logo após o nascimento do bebê para detectar possíveis problemas auditivos. Em alguns países, os testes não são acessíveis à toda população, sendo o custo um dos principais impeditivos. Na tentativa de superar esse problema, pesquisadores dos Estados Unidos desenvolveram um método de triagem auditiva com objetos atípicos e mais acessíveis: fones de ouvido e um telefone celular. Em testes, o dispositivo funcionou tão bem quanto as ferramentas tradicionais — detectou corretamente perdas auditivas em todos os voluntários. Detalhes da pesquisa foram publicados na revista científica Nature Biomedical Engineering.
Os pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, constataram que, embora o equipamento convencional seja dispendioso, o princípio de funcionamento para enviar os estímulos sonoros é simples: requer dois alto-falantes para enviar o estímulo sonoro ao ouvido e um microfone para gravar a resposta. A compra dessas peças, de tubos e de adaptadores custou cerca de US$ 10 (R$ 50) à equipe. "O próprio smartphone pode ser um mais barato ou de segunda mão", diz Justin Chan, autor principal do estudo.
Por não serem tão sensíveis, fones de ouvido simples não conseguem detectar os sons naturais emitidos pela cóclea — chamados emissões otoacústicas (EOAs). Esse é um dos motivos do alto custo dos aparelhos de triagem convencionais, que têm fones mais avançados. Nesse caso, eles são projetados para que o alto-falante reproduza dois tons sem qualquer interferência.
Segundo a médica otorrinolaringologista Tatiana Guthierre, o caminho encontrado pelos cientistas americanos para se aproximar desse mecanismo foi enviar os dois sons em paralelo. "São duas frequências enviadas juntas para que sejam processadas pelas células ciliadas", explica a também membro da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF).
No novo dispositivo, os fones de ouvido são conectados a um microfone por uma sonda que pode ser colocada no ouvido do usuário, enviando dois tons através de cada um dos fones, com frequências f1 e f2. Os sons, então, viajam para o ouvido, que responde ao estímulo e gera um som fraco, em uma frequência bem menor. Um microfone junto à sonda capta a presença desses sons transformados e envia o sinal para um aparelho celular, onde eles são processados. "Implementamos algoritmos que funcionam em tempo real no smartphone para detectar esses sons muito fracos e reduzir o ruído", diz Chan.
A equipe testou a solução em 201 orelhas de pacientes com 1 semana até 20 anos de idade. Os voluntários também usaram os aparelhos convencionais, para que os cientistas pudessem fazer as comparações. A sensibilidade do novo dispositivo para perdas auditivas funcionou em todos os casos. "Isso significa que fomos capazes de detectar se um paciente tinha perda auditiva em 100% do tempo", enfatiza Chan. Além disso, a taxa de especificidade do dispositivo foi de 88,9%, quando comparado à performance dos aparelhos convencionais. "Para todos os pacientes que não apresentavam perda auditiva, nosso teste identificou corretamente 88,9% como não tendo perda auditiva, que é a especificidade do nosso teste."
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Uso clínico
Com os resultados expressivos, o grupo começou a buscar alternativas para o uso do aparelho de diagnóstico em escala maior. "Estamos discutindo parcerias clínicas na capital do Quênia para determinar como podemos trabalhar com os profissionais de lá e implantar os nossos dispositivos em clínicas locais de forma ponderada", adianta o cientista.
A equipe projeta que, em razão dos baixos custos do aparelho, ele não só tem potencial para ser utilizado em ambientes clínicos, como também poderá ser fabricado e vendido facilmente. "Também fizemos o nosso design de hardware e código de software com código aberto para que possam ser reproduzidos por qualquer pessoa", diz Chan.
Na avaliação de Tatiana Guthierre, o maior destaque do trabalho é justamente a queda nos custos do equipamento de diagnóstico. "Sendo mais barato, é possível ampliar o acesso". A médica também indica como vantagem a possível facilidade em caso de manutenção ou defeito. "Hoje, dependendo do tipo de problema que o aparelho de eletrofisiologia auditiva apresentar, o ajuste é muito complexo, e o dispositivo precisa ser deslocado até outra cidade para o suporte técnico", ilustra.
Zumbido
Como com o equipamento é possível variar as faixas de frequência das emissões, há outras aplicabilidades a serem exploradas, indica a médica. "Serviria tanto para triagem auditiva neonatal como para avaliar pacientes adultos na investigação de perdas auditivas, zumbidos e outras queixas audiológicas", acredita Guthierre.
A otorrinolaringologista Juliana Gusmão avalia que o dispositivo ainda apresenta algumas limitações. Segunda ela, o aparelho mede apenas as emissões otoacústicas por produto de distorção — ou seja, capta a resposta gerada pelo ouvido através de dois tons simultâneos que geram um produto de distorção. Já o exame feito na maternidades capta as emissões otoacústicas transientes, que consistem na emissão de um som breve com amplo espectro de frequência. "É mais sensível para o diagnóstico das perdas auditivas", diferencia.
Apesar disso, a médica, que é membro da ABORL-CCF, pontua que a pesquisa apresenta uma ideia promissora. "Com a continuidade das pesquisas, a equipe deve proporcionar para a sociedade um dispositivo seguro, barato e efetivo", projeta. Guthierre adverte que, como qualquer inovação, para o dispositivo ser adquirido pelo sistema de saúde, é necessário que ele seja aprovado em todos os trâmites de reconhecimento técnico e científico. "Uma vez vencidas essas etapas em todas as instâncias, ter uma alternativa mais barata e eficiente seria importante para sanar as disparidades", conclui a médica.