O trabalho do arqueólogo é marcado por um paradoxo: ao mesmo tempo em que tem como missão descortinar as camadas do passado, ao fazê-lo pode destruir o objeto de estudo. Assim, algumas pesquisas acabam limitadas, uma barreira que, cada vez mais, tecnologias de imagem conseguem transpor. Sem danificar as peças, procedimentos não invasivos conseguem revelar mais do que os olhos poderiam detectar.
Na França, pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia e da Geórgia Tech-Lorraine acabaram de decifrar a mensagem inscrita em uma cruz funerária do século 16 que, por séculos, ficou apagada pela corrosão do chumbo, material do qual é feita. A peça foi encontrada em um túmulo, em uma abadia em Remiremont. Conhecida como croix d'absolution, é um artefato comum da Idade Média e do início da Moderna. Exemplares do tipo já foram encontrados em locais na França, Alemanha e Inglaterra.
De acordo com Aurélien Vacheret, diretor do Museu Charles-de-Bruyères, onde a cruz está guardada, esse tipo de artefato religioso traz, normalmente, inscrições de orações ou informações sobre o morto. "Acredita-se que seu objetivo era buscar a absolvição de uma pessoa do pecado, facilitando sua passagem para o céu." Vacheret recorreu aos pesquisadores da Tech-Lorraine na expectativa de conseguirem decifrar a mensagem gravada no objeto sem destruí-lo.
Uma equipe multidisciplinar composta por cientistas de imagem, um químico especializado em arqueologia e um historiador da arte assumiu o desafio. No laboratório de David Citrin, professor da Escola de Engenharia Elétrica e de Computação (ECE), os pesquisadores se dedicaram a tornar visível a inscrição de cinco séculos. Citrin é especialista em avaliação não destrutiva; ele e a equipe desenvolvem técnicas que permitem o exame detalhado das camadas ocultas de um objeto sem alterar ou danificar sua forma original.
Muitas vezes, esse trabalho tem aplicações industriais, como detectar danos em fuselagens de aviões. Porém, agora, a equipe se deparou com um desafio muito mais emocionante ao explorar as tecnologias em peças antigas. "Claramente, abordagens que acessam essas informações sem danificar o objeto são de grande interesse para os arqueólogos", afirma Alexandre Locquet, professor da ECE e pesquisador de um laboratório de colaboração internacional que participou da pesquisa. "Nossa abordagem nos permitiu ler um texto que estava escondido sob a corrosão, talvez por centenas de anos." O resultado do estudo foi publicado na revista Scientific Reports.
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Radiação
Para isso, a equipe usou um escâner de terahertz comercial, que fez o rastreamento da cruz a cada 500 mícrons — aproximadamente 0,5mm. Primeiro, o equipamento enviou pulsos curtos de radiação eletromagnética terahertz, uma forma de luz que viaja em pequenos comprimentos de onda sobre cada seção da peça. Algumas ondas voltaram da camada de corrosão, enquanto outras penetraram as partes danificadas, refletindo, então, na superfície do objeto de chumbo. Isso produziu dois ecos distintos do mesmo pulso original, diz Locquet.
Em seguida, a equipe usou um algoritmo para processar o atraso de tempo entre os dois ecos. Esses dados revelaram a espessura da corrosão em cada ponto escaneado. As medições dos feixes de luz refletidos do metal subjacente foram, então, coletadas para formar imagens da superfície do material, abaixo das partes oxidadas.
Embora importantes dados tenham sido coletados durante o processo de digitalização, as imagens brutas eram muito confusas e havia excesso de ruído. A inscrição, portanto, permaneceu ilegível. Foi então que Junliang Dong, do laboratório da Citrin, decidiu processá-las de uma forma especial. Ao subtrair e juntar partes das figuras escaneadas em diferentes frequências, Dong conseguiu restaurá-las e aprimorar o resultado.
O que restou foi uma imagem surpreendentemente legível, contendo o texto, conta Vacheret. Assim, ele conseguiu identificar várias palavras e frases latinas, todas da oração do Pai Nosso. A equipe também trabalhou com um conservacionista para reverter quimicamente a corrosão na cruz, o que confirmou o teor da inscrição.
Mas a técnica permitiu visualizar mais coisas do que a olho nu. Comparando o material escaneado e tratado com a inscrição da cruz já limpa, os cientistas descobriram que as imagens que conseguiram por meio da tecnologia revelaram partes da inscrição não observáveis na peça original. "Ao descobrir aspectos adicionais das inscrições que antes não eram documentadas, esse trabalho oferece uma compreensão mais profunda da cruz e uma visão mais aprofundada do cristianismo do século 16 em Lorraine", diz Citrin.
Limitações
O pesquisador, porém, destaca que nem todos os objetos de chumbo podem ser estudados da mesma forma que a cruz. "Alguns são grandes, alguns devem permanecer in situ (no local de origem) e alguns são muito delicados. Esperamos que nosso trabalho abra o campo de estudos de outros objetos de chumbo, revelando novos segredos por baixo das corrosões."
A equipe também usou as imagens terahertz para desnudar pinturas do século 17, o que trouxe revelações sobre a estrutura das camadas e novas ideias sobre as técnicas usadas pelos mestres da pintura. Atualmente, os cientistas pesquisam cerâmicas romanas antigas.