Ciencia

Dispositivo sem fios ajuda pacientes tetraplégicos a operar computador com força do pensamento

O dispositivo, batizado de Brown Wireless Device (BWD), tem eletrodos que conseguem captar e transmitir a atividade neural do paciente. Tudo sem usar fios

Vilhena Soares
postado em 12/04/2021 07:14
 (crédito: Braingate.ord/Divulgação)
(crédito: Braingate.ord/Divulgação)

Recursos tecnológicos são um dos principais aliados de indivíduos com tetraplegia. Com a ajuda de interfaces cérebro-computador (ICC), por exemplo, pode-se digitar em telas de computador ou mover próteses robóticas apenas com o pensamento. Para tornar essas ferramentas ainda mais práticas, pesquisadores americanos resolveram retirar todos os fios e cabos dos dispositivos.

A aposta é fazer com que o sistema de ICC já usado pelos pacientes funcione com ajuda da internet sem fio. O projeto foi apresentado na última edição da revista especializada Transactions on Biomedical Engineering.
O dispositivo, batizado de Brown Wireless Device (BWD), tem eletrodos que conseguem captar e transmitir a atividade neural do paciente.

Para manter a sua eficácia sem o uso de fios e cabos, os cientistas utilizaram um pequeno transmissor elétrico — com cerca de duas polegadas de tamanho e 45 gramas. O aparelho é posicionado no topo da cabeça do usuário e, por meio de um sinal de internet wireless, transfere os sinais cerebrais para um computador.

A fim de testar a tecnologia, os cientistas selecionaram dois homens, de 35 anos e 63 anos, que sofreram lesões na medula espinhal. Os testes foram bem-sucedidos: os dois voluntários relataram que tiveram mais facilidade para usar o novo dispositivo, comparando com o sistema antigo. “Demonstramos que esse sistema sem fio é funcionalmente equivalente aos sistemas com fio considerados, por anos, o padrão ouro nessa área”, enfatiza, em comunicado, John Simeral, professor-assistente da Universidade de Brown, nos Estados Unidos, e um dos criadores da tecnologia.

Simeral relata que os sinais são gravados e transmitidos com fidelidade semelhante ao método tradicional. “A única diferença é que as pessoas não precisam mais estar fisicamente presas ao equipamento, o que abre novas possibilidades em termos de como o sistema pode ser usado”, compara.

Até dormindo

Os voluntários também testaram a tecnologia em casa. Livres de cabos, conseguiram utilizar o dispositivo continuamente por até 24 horas, fornecendo aos pesquisadores dados de longa duração — inclusive enquanto dormiam. “Queremos entender como os sinais neurais evoluem com o tempo. Com esse sistema, somos capazes de observar a atividade cerebral em casa, por longos períodos, de uma maneira que era quase impossível antes”, afirma, em comunicado, Leigh Hochberg, professor de engenharia da mesma instituição americana e também autor do estudo.

Segundo os cientistas, as informações podem ajudá-los a projetar mais algoritmos de decodificação e, com eles, refinar outros dispositivos voltados para a mobilidade de pessoas com paralisia. Outra vantagem do aparelho é o consumo mínimo de energia — ele funciona ao longo de 36 horas após ser carregado durante aproximadamente 40 minutos.

Para Victor Hugo de Albuquerque, membro do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e professor do Departamento de Engenharia de Teleinformática da Universidade Federal do Ceará (UFC), o trabalho do grupo americano avança no uso de ICCs. Mas, segundo o especialista, a troca do wireless pelos fios ainda pode gerar falhas durante o uso. “Sem os cabos, o paciente tem mais liberdade, e esse é um ganho importante. Mas, assim como temos problemas com queda de conexão de wi-fi em casa, isso pode acontecer com o paciente que usa essa tecnologia, o que impedirá que o comando seja recebido pelo computador. Podemos ter dificuldades com o delay também. Se a velocidade da internet for reduzida, teremos uma atividade feita de forma bem mais devagar”, explica.

O professor da UFC avalia que testes com mais participantes e ajustes futuros poderão ajudar a eliminar o risco dessas possíveis falhas. “Acredito que, com mais aperfeiçoamento, esse tipo de estratégia possa ser bem executada. É preciso também pensar na questão comercial, nos requisitos para a industrialização. É importante levar em consideração esses fatores nas próximas análises”, sugere.

Implante

Com o sucesso dos testes iniciais, a equipe adianta que o próximo passo é desenvolver uma versão de ICC que possa ser implantada no cérebro dos usuários. “A evolução desse tipo de tecnologia que temos agora, de dispensar cabos de aço e usar um transmissor em miniatura, é um grande passo em direção ao uso funcional de interfaces neurais de alto desempenho que sejam totalmente implantadas, aumentando ainda mais a velocidade e a exatidão nos comandos”, relata Sharlene Flesher, coautora do projeto e pesquisadora na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Segundo Victor Albuquerque, o uso de dispositivos implantáveis tem crescido bastante dentro da neurotecnologia e deve ganhar ainda mais espaço nos próximos anos. “Em Natal, temos muitos projetos nessa linha, em parceria com o Miguel Nicolelis, por exemplo, que trabalha com exoesqueletos para indivíduos tetraplégicos há alguns anos e também estuda o uso de eletrodos implantáveis. É uma área bastante complicada de ser explorada. É difícil, por exemplo, lidar com cada uma das diversas áreas neurais, que são extremamente complexas. Ainda assim, temos muitos projetos bacanas que devem ter bons desdobramentos logo.”

Os criadores do projeto americano também apostam na ocorrência de grandes avanços em um futuro próximo. “É importante ressaltar que a tecnologia sem fio descrita em nosso artigo nos ajudou a obter uma percepção crucial do quanto essa área de pesquisa é rica. Vemos que temos um longo caminho à frente na busca da próxima geração de neurotecnologias, que sejam mais simples e práticas. Iremos em busca disso”, garante Arto Nurmikko, autor do estudo e pesquisador da Universidade de Brown.

Com esse sistema, somos capazes de observar a atividade cerebral em casa, por longos períodos, de uma maneira que era quase impossível antes”

Leigh Hochberg, professor de engenharia da Universidade de Brown e um dos autores do estudo

Palavra de especialista

Rotina facilitada

“Sem dúvidas, esse tipo de tecnologia pode contribuir para aumentar a qualidade de vida dos pacientes. Isso porque os fios exigem uma expertise dos usuários e também de seus cuidadores, já que também podem causar uma série de transtornos. É possível, por exemplo, que eles se soltem, e isso atrapalhe a emissão de comandos. Com um sistema como o proposto pelos americanos, pode-se ter mais autonomia, que é algo muito importante. Acredito que teremos muito mais pesquisas semelhantes a essa. Tenho acompanhado um avanço enorme nessa área, e sabemos que a neurociência não é feita sem o auxílio da tecnologia. São recursos como esse — dispositivos que conseguem captar e transmitir a atividade neural para computadores, gerando, assim, a possibilidade de realizar tarefas cotidianas — que auxiliam esses pacientes na rotina diária e contribuem para que a vida dessas pessoas se torne mais fácil.”

Leandro Freitas Oliveira, neurologista da clínica Viva Mais Brasília

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