A empresa norte-americana Microsoft surpreendeu ao patentear uma nova tecnologia capaz de permitir o contato com entes já falecidos, ou quase isso. Na verdade, trata-se de um chatbot modelado para imitar uma pessoa específica, com base em suas características físicas e personalidade. A ferramenta coletaria dados sociais como cartas, imagens, postagens em mídias sociais, mensagens e dados de voz para criar um robô habilitado para interagir e conversar como se fosse o indivíduo em questão.
Segundo informações da patente, a tecnologia possibilitaria, além das conversas por chat, a reprodução de voz, imagem e atributos comportamentais da pessoa, como interesses e opiniões.
“A pessoa específica que o chatbot representa pode corresponder a uma entidade passada ou presente (ou uma versão dela), como um amigo, um parente, um conhecido, uma celebridade, um personagem fictício, uma figura histórica, uma pessoa qualquer, etc. A pessoa específica também pode corresponder a si mesmo, por exemplo, com o próprio usuário criando e treinando o chatbot”, afirma o documento, sugerindo que usuários vivos também podem criar uma versão digital de si antes de morrerem.
O recurso poderia ser usado também para aplicar algoritmos de reconhecimento facial e de voz para criar sons e modelos 2D ou 3D da pessoa, a fim de aprimorar o chatbot.
Especialistas, no entanto, veem a novidade com ressalvas. “A ferramenta virtual pode ilusoriamente modificar o ocorrido na cabeça de alguém. É uma relação de contato unilateral, onde o ente já falecido pode ser recriado, mas os diálogos serão pontuais e premeditados, não existe emoção. Há uma série de malefícios psicológicos na alimentação do sofrimento, principalmente no trato de reverter algo irreversível”, alerta o psicólogo Alexander Bez.
A tecnologia se assemelha à retratada no episódio Be right back, da série antológica de ficção científica Black Mirror, exibida pela plataforma de streaming Netflix. Na trama, a protagonista perde o namorado em um acidente de carro e, sem conseguir lidar com a dor, continua a ter contato com o falecido por meio de uma inteligência artificial.
Ainda que a patente da Microsoft possa causar alguma estranheza, não há intenção por parte da empresa em transformar a tecnologia em um produto disponível para o público, pelo menos por enquanto. Em 22 de janeiro, o gerente geral de programas de Inteligência Artificial (IA) da empresa, Tim O´Brien, respondeu um usuário no Twitter que se revoltou com a notícia do patenteamento:
“As empresas de tecnologia ainda pensam que o Black Mirror é um projeto, não uma história preventiva”, afirmou o usuário.
“Estou analisando isso — a data de aplicação (abril de 2017) é anterior às análises de ética de IA que fazemos hoje (estou no painel), e não tenho conhecimento de nenhum plano para construir/enviar (e sim, é perturbador)”, concordou O’Brien. Ele se refere ao pedido de patente da Microsoft que, apesar de só ter sido aceito no último mês (janeiro), havia sido protocolado em 2017, quando as análises éticas em relação a inteligências artificiais não eram feitas como são hoje.
O psicólogo especialista em relacionamentos pontua que, mesmo que a ferramenta venha a público algum dia, não é recomendado fazer o uso dela com este propósito. “É necessário que as pessoas compreendam que a morte é um assunto complexo e que, infelizmente, todos nós teremos que lidar com ela um dia. Você dialogar com o inexistente, criar expectativa em algo frio, como a tecnologia, é problemático. O recurso fere alguns princípios básicos do trato existencial”, conclui o profissional.
O Correio tentou contato com a Microsoft, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
*Estagiária sob supervisão de Fernando Jordão