INOVAÇÃO

Cozinha impressa: pesquisadores da USP e França criam gel para alimentos tridimensionais

Pesquisadores da Universidade de São Paulo, em parceria com cientistas franceses, criam géis, a partir de amido de mandioca e trigo, que podem ser usados para o desenvolvimento de alimentos tridimensionais

Bijuterias, sapatos, móveis, próteses médicas e peças automotivas são alguns dos objetos que podem ser feitos em impressoras 3D, uma das tecnologias que mais cresceram nos últimos anos. A técnica inovadora também poderá ser usada, em breve, na área gastronômica. Pelo menos, esse é o objetivo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), que desenvolveram géis, feitos à base de amido de mandioca e trigo, para serem utilizados como ingredientes em impressoras inteligentes.

A equipe de pesquisadores brasileiros, que trabalhou em parceria com cientistas franceses, obteve sucesso nos testes iniciais e pretende desenvolver materiais ainda mais complexos no futuro. A técnica, segundo eles, também pode ser adotada no desenvolvimento de cápsulas de medicamentos e alimentos nutracêuticos.

Os pesquisadores explicam que o amido de milho e o trigo foram escolhidos como matéria-prima para os ingredientes da impressão 3D devido às suas propriedades químicas e alta disponibilidade. “São produtos que temos em grande quantidade aqui, no Brasil, e também na Europa. Sabíamos, também, que poderíamos mexer na estrutura de ambos facilmente”, disse ao Correio Bianca Chieregato Maniglia, pesquisadora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e autora do estudo, publicado na revista Food Research International.

Alterações

Como primeiro passo da pesquisa, os cientistas tiveram que modificar a estrutura dos dois materiais escolhidos, para que eles se adequassem ao sistema de impressão 3D. “Nosso objetivo foi chegar a um gel que tivesse um certo nível de viscosidade. Precisávamos que ele não se espalhasse durante a produção e que conseguíssemos construir camadas com ele”, detalhou a cientista.

Para modificar o amido de mandioca, os cientistas misturaram o produto com ozônio (gás) e água em um recipiente. Depois de borbulhar, os pesquisadores retiraram a água. O processo fez com que o amido sofresse quebra de moléculas em sua estrutura e apresentasse a consistência necessária para ser usado na impressora. Em um segundo método de produção, os cientistas usaram o calor para modificar o trigo.

Os cereais foram colocados em um forno à temperatura de 130°C, o que gerou modificações em sua estrutura química. Os pesquisadores adicionaram água no pó obtido da queima e chegaram à consistência ideal. “É como se você produzisse um mingau. O processo é o mesmo, à medida que você coloca água vai chegando à consistência que precisa”, explicou a pesquisadora da USP.

Em testes laboratoriais, os pesquisadores usaram os dois ingredientes nas impressoras 3D e obtiveram resultados positivos. Os cientistas conseguiram criar fileiras e formatos geométricos diferentes com os dois géis. “Produzimos labirintos e formas mais complexas, como uma estrela e um coração. Isso é importante porque não basta imprimir. Mais para frente, teremos que realizar outros processos, precisamos que a estrutura seja consistente para ir além nas formas construídas”, ressaltou Bianca Maniglia. Ela realizou os testes iniciais com os géis na Escola Agroalimentar e Alimentar Nantes (Oniris) e no Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica (INRAE), na França, durante seu pós-doutorado.

Os cientistas enfatizaram que mais estudos precisam ser feitos para incluir outras características nos ingredientes criados. “Ainda não trabalhamos com o sabor. Isso ocorrerá mais para frente, será uma outra etapa do trabalho que exigirá mais processos químicos”, citou a cientista.

Como próximo passo, os pesquisadores pretendem usar materiais mais complexos como base para a criação de outros ingredientes. “Queremos desenvolver proteínas alternativas. A área de carnes vegetais que imitam o gosto das naturais, por exemplo, tem crescido muito e queremos explorar esse nicho. Estamos buscando materiais no Brasil que podem ser usados com esse objetivo. Agora, temos uma nova impressora 3D na USP e queremos trabalhar com ela”, adiantou a cientista.

Múltiplas aplicações

Os pesquisadores também planejam usar a tecnologia para desenvolver outros produtos não alimentícios. Segundo eles, o amido de mandioca pode ser utilizado na área de produção de medicamentos. “Já temos alguns produtos que são feitos com base em polímeros de amido, como réplicas de ossos. Outra aplicação é o desenvolvimento de cápsulas de fármacos. Fazemos todo o formato com base no amido. Existe a possibilidade de desenvolver um designer que faça com que a droga seja liberada no estômago e depois no intestino, por exemplo. Seria um design novo para um uso mais inteligente”, detalhou a pesquisadora.

Vivaldo José Breternitz, professor da Faculdade de Computação e Informática da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, ressaltou que a pesquisa brasileira é interessante por usar técnicas inteligentes para transformar os ingredientes. “É muito bacana o processo usado por eles para modificar o amido de mandioca e o trigo para géis, sem mudar suas essências. A forma como todas as etapas são feitas não é complicada e se mostra muito eficaz. Acredito que esse tipo de tecnologia pode ajudar a diminuir bastante o desperdício de alimentos também. Você gera produtos alimentícios sem produzir rejeitos”, opinou o especialista.

Para Breternitz, porém, será um desafio para os pesquisadores incluir outras características necessárias para a produção de alimentos em impressoras 3D. “Ainda é preciso cuidar do sabor, do cheiro e da cor, pois são fatores importantes quando tratamos de comida. Para englobar esses detalhes, muitos outros processos vão ser necessários, o que vai exigir ainda mais trabalho desse grupo”, observou. “Acredito que o mesmo também vale para cápsula de medicamento. É um processo que precisará ser feito com muito cuidado, até para poder competir com as empresas que já produzem esse tipo de material”, completou.

Segundo o professor, mais novidades interessantes estão por vir nesse campo. “É uma área que se expande a cada dia, principalmente aqui no Brasil. Temos muitas pesquisas que tentam ampliar a gama de materiais produzidos por essas máquinas e também aprimorar muitas coisas que já são feitas. Podemos apostar que vários avanços nessa área podem surgir nos próximos anos”, ressaltou.

Organismo em equilíbrio

São produtos que contêm ambientes biologicamente ativos, como vitaminas e minerais, presentes em alimentos como frutas e verduras, mas que foram isolados para serem comercializados em formas de pó, cápsulas ou comprimidos. A diferença dos nutracêuticos para os suplementos é que eles são feitos com diversas substâncias e não apenas um elemento concentrado. Geralmente, são indicados por nutricionistas para ajudar a equilibrar funções do organismo, como a digestão, e até para reduzir a ansiedade.

 

Palavra de especialista


Customização

“Esse trabalho foi feito por cientistas de uma instituição que tem experiência nessa área, só que o foco principal deles é a bioimpressão, que dá prioridade à produção de órgãos em 3D. Eles ainda precisam desenvolver mais essa área de alimentos. Um dos pontos mais interessantes da impressão de comida está na customização. Imagine como seria bacana você conseguir criar um quindim, por exemplo, em forma de pirâmide. A possibilidade de imprimir um biscoito com a foto da pessoa em cima dele também existe. Tudo isso com a ajuda dessas máquinas. O mesmo ocorreria em relação a medicamentos. Muitos cientistas trabalham nessa área de impressão 3D com esse objetivo. Uma única dificuldade é que, por ser customizada, essa produção não pode ser feita na mesma velocidade e quantidade realizada pela indústria. Isso seria mais difícil. Mas, ainda assim, esse tipo de pesquisa merece ser mais explorado. Acredito que podemos esperar ainda mais novidades desse nicho no futuro, assim como vemos também em outros países.”

Jorge Lopes, coordenador do núcleo de experimentação tridimensional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)

Material biológico em 3D


Pesquisadores americanos desenvolveram um gel com propriedades elásticas para ser usado na produção de réplicas de ossos, cartilagens e outros tecidos humanos em impressoras 3D. O novo material pode ser moldado de formas distintas, o que facilita a produção industrial e expande as possibilidades de uso. A tecnologia foi apresentada na última edição da revista especializada Communication Physics.

Os criadores do novo gel explicam que o desenvolvimento de “peças” biológicas é uma tarefa difícil, pois grande parte delas apresenta uma alta complexidade, já que executafunções importantes e complicadas no organismo humano. “Não temos materiais com o refinamento necessário para fazer esse tipo de produto. Outro problema é que as técnicas atuais de bioimpressão não conseguem lidar com materiais mais inteligentes”, detalhou, em um comunicado à imprensa, Ibrahim T. Ozbolat, autor do estudo e pesquisador da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

O gel foi projetado para permanecer em estado sólido quando está em “descanso”, mas, ao sofrer algum tipo de estresse, ele se torna mole. Essa propriedade é essencial para executar tarefas feitas por articulações e alguns tipos de tecidos e ossos. “Testamos tipos diferentes de géis e conseguimos chegar ao nosso objetivo com o uso de uma poderosa enzima que acrescentamos no material. Muitas tentativas deram errado, mas conseguimos criar um produto resistente, que pode ser explorado com facilidade pela indústria”, ressaltou o pesquisador.

Nos testes, os especialistas usaram uma tecnologia de impressão mais delicada do que as tradicionais e conseguiram unir pequenas células do gel. Dessa forma, os cientistas desenvolvem inúmeras formas geométricas , o que expande a possibilidade de uso do material. “Podemos criar anéis de cartilagem que sustentam a traqueia, por exemplo”, explicou o autor do estudo.

Os pesquisadores adiantaram que mais pesquisas são necessárias para que, no futuro, o estudo possa, de fato, contribuir para a área de saúde. “Acreditamos que teremos um material que pode ser a base de criações únicas e extremamente úteis para a medicina”, completou o cientista.