>>DEBORAH FORTUNA

No meio do caminho, tinha uma pedra... e mais pedras, buracos, poeira, lama. No caso de Antônia*, tinha também uma grave ameaça. Moradora da Aguilhada, localidade que integra o núcleo rural de Capão Comprido, em São Sebastião, a agricultora de 54 anos passou pelo pior momento da vida por não ter acesso a transporte perto de casa.

Era uma manhã do ano passado. Como faz sempre que precisa ir à área urbana de São Sebastião, Antônia caminhou até a caixa d'água que funciona também como ponto de carona do local, pois os ônibus só passam na BR, que fica a 15km de onde ela mora. Por volta das 10h, um desconhecido passou de carro e se ofereceu para levá-la. A gentileza, porém, se revelou uma armadilha.

"Só foi eu entrar (no carro) que ele foi passando a mão em mim, pedindo meu número de telefone. Eu comecei a falar ‘pelo amor de Deus, me deixa aqui'”, conta. Antônia, então, recorreu a uma mentira para distrair o abusador. "Eu falei 'olha ali minha colega me olhando' e pulei do carro. Saí correndo. Deus que me livrou disso, eu senti um pânico geral", completa. Depois dessa experiência, a mulher se sente ainda mais limitada que antes. “Hoje, só saio de casa com meu esposo. Vamos nós dois de carona, mas eu só saio de casa com ele. Eu saía sozinha, agora, não mais.”

Durante um mês, o Correio visitou diversas localidades que integram núcleos rurais em cinco regiões administrativas do Distrito Federal: Brazlândia, Gama, Paranoá, Planaltina e São Sebastião. Em todas elas, o hábito de recorrer à carona é constante, mesmo naqueles em que há linhas de ônibus disponíveis, já que, em alguns casos, a espera por transporte é muito grande. A solução, porém, que na maioria das vezes realmente é uma forma de solidariedade, acaba expondo os moradores, principalmente as mulheres, a riscos.

No núcleo rural São José, em Planaltina, uma história semelhante, ocorrida três anos atrás, não sai da memória de Francisca*, 56 anos. Em uma manhã, ela e a filha, então com 16 anos, esperavam o ônibus que atende a comunidade para ir ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran), a quase 70km dali. Com a demora, o medo de perder a consulta falou mais alto, e as duas aceitaram a oferta de um estranho que passou de carro e negociou com elas um pagamento no mesmo valor da passagem.

“Entramos no carro e, depois de um tempo, ele perguntou: ‘Quem vai ser a primeira?’. Eu disse que nós íamos descer juntas, mas aí eu entendi o que ele queria. Ele repetiu a pergunta e colocou a mão nas minhas partes íntimas”, lembra. Francisca e a filha inventaram que tinham doenças venéreas e começaram a gritar e lutar com o homem. “Ele ficou com raiva e disse que não ia ficar com duas mulheres covardes. Deixou a gente no meio do mato e tivemos de andar por um tempo até encontrar uma parada de ônibus”. Mãe e filha dizem que fizeram um boletim de ocorrência, mas, pelo que sabem, ninguém foi punido. 

* Nomes fictícios a pedido das entrevistadas  

Batalhões rurais

Não é possível precisar se, devido a condições como as descritas por Antônia e Francisca, essas regiões acabam sendo mais violentas, pois, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), os dados sobre crimes no Distrito Federal não distinguem se as ocorrências são do meio urbano ou rural. Para Glauco Stéfano Teixeira, professor do curso de arquitetura e urbanismo do IESB, no entanto, a precariedade do transporte público acaba agravando a insegurança nas áreas menos povoadas. “Geralmente, essas pessoas precisam se deslocar antes do horário comercial, quando não há muitas pessoas na rua”, lembra. Somam-se a essa realidade, a parca iluminação pública e o excesso de áreas isoladas, muitas com mato alto.

A Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) afirma que, quando acionada por moradores do núcleo rural, vai até o local das ocorrências, mas o principal trabalho é o de buscar aumentar a segurança nos núcleos rurais por meio de três Batalhões Rurais que cobrem as regiões Leste, Oeste e Sul do DF.

A abordagem nesses núcleos, esclarece a corporação, é diferente da realizada em centros urbanos. “Constantemente, são realizados pontos de bloqueios (blitz) e operações a fim de reduzir os índices criminais. Além disso, há o guardião rural, em que os policiais militares realizam visitas assistidas, cadastrando os chacareiros na rota de policiamento do Batalhão da área”, informa, por meio de nota.

 

Sem opção

Mesmo ciente do perigo que correm, os moradores dos núcleos rurais têm dificuldade de abrir mão das caronas, mesmo porque, lembra Reginaldo de Paula Camargo, 41 anos, também morador do Capão Comprido, recusar a ajuda pode ser ainda mais perigoso. “Muitos dos que trabalham na cidade têm de madrugar. E na hora de ir embora, é aquele sacrifício, esperando carona, às vezes por horas. Se não conseguem, vêm a pé mesmo. E, aí, correm ainda mais risco de assalto, de estupro”.

É o que conta Josilene Pereira Gonçalves, 32 anos, que mora no Capão Comprido e trabalha como faxineira no Lago Sul. Como contou Antônia, o ônibus que atende a comunidade para na rodovia, o que, para Josilene, significa uma caminhada de 6km da porta de casa até o ponto. “A gente vem andando. Se o pessoal oferece carona, aceito, porque é muito cansativo. Quando não consegue carona, a gente tem que vir a pé”, diz.

Como não sabe se contará com ajuda, a trabalhadora sai de casa às 5h40 diariamente, para estar na casa onde trabalha às 7h30. No fim de semana, não tem jeito: para evitar a dor de cabeça, ela prefere não sair de casa. “A gente evita para não ter que passar por isso”, diz Josilene, que pensa em deixar o Capão Comprido e ir morar com o marido e o filho de 6 anos em uma área urbana, que tenha “transporte na porta de casa”. 

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