Saúde

Mitos e preconceitos envolvendo bebês com síndromes atrapalham amamentação

Profissionais envolvidos na amamentação, mães e bebês provam com ciência e exemplos que a prática é possível para os recém-nascidos com síndrome de Down e bebês com outras síndromes

Síndromes, como a trissomia 21, não são impeditivos absolutos para a amamentação  -  (crédito:  Valdo Virgo/CB/D.A Press)
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Síndromes, como a trissomia 21, não são impeditivos absolutos para a amamentação - (crédito: Valdo Virgo/CB/D.A Press)

Quando engravidou do segundo bebê, a servidora pública Mariana Jacob Pessoa, 38 anos, não imaginava os desafios — e vitórias — que acompanhariam essa jornada. Mãe de Daniel Gondim Jacob Cândido Pessoa, que completa 2 anos amanhã e ainda tinha meses de vida quando descobriu a nova gestação, Mariana tinha, até então, uma experiência mais tradicional da maternidade

Com uma gestação tranquila, um pós-parto leve e uma produção generosa de leite, a servidora seguiu amamentando Daniel mesmo após descobrir a gravidez de Cecília Gondim Jacob Cândido Pessoa, hoje com 1 ano e 1 mês. Apesar do susto de saber que teria dois bebês para cuidar ao mesmo tempo, nada a preparou para o sentimento de medo que chegaria. 

Durante o pré-natal, Mariana descobriu que a filha tinha questões de saúde graves, consideradas até mesmo incompatíveis com a vida. "Eu não sabia se ela ia vingar, se conseguiria chegar a termo ou a uma idade gestacional que poderia sobreviver. Isso coloca tudo em perspectiva", conta. 

Por isso, o diagnóstico de que Cecília teria trissomia 21, a síndrome de Down, não foi para ela uma grande preocupação. "Só queria que ela chegasse ao mundo, o que fosse acontecer depois, era lucro." Mariana começou, então, a estudar e se informar sobre a síndrome de Down e lembrou de um dos mitos e preconceitos que sempre escutava, de que bebês com trissomia 21 não mamam.   

Cecília, na UTIN
Cecília, na UTIN (foto: Arquivo pessoal)

Trabalhando com a expectativa de que não conseguiria amamentar Cecília, continuou estudando e descobriu que, além de ser possível, o processo seria extremamente benéfico para a filha. 

Amanda Veras, fonoaudióloga da Maternidade Brasília, acompanhou Mariana e Cecília no pós-parto, e explica que, para bebês com síndrome de Down, a amamentação é especialmente importante. "É um exercício facial, que auxilia no ganho de habilidade para deglutir, respirar e, posteriormente, falar." 

Esses bebês sofrem com hipotonia muscular, uma flacidez da musculatura corporal, inclusive facial, que pode atrapalhar a amamentação pela falta do tônus muscular necessário para o movimento de sucção do peito — o que contribui para o mito de que eles não podem ou não conseguem mamar. 

Amanda ressalta que a fraqueza muscular pode causar no bebê um menor reflexo associado à questão respiratória — em alguns casos, pode ter uma fraqueza pulmonar —, o que também pode impactar no processo de aleitamento. 

O diferencial é compreender que cada bebê é único, independentemente de compartilharem ou não da mesma síndrome, e, portanto, não podem ser tratados sem a consideração de suas particularidades. "No caso da Cecília, o fato de ela não ter nenhuma cardiopatia facilitou o estímulo. Fiz a avaliação do tônus muscular da face dela, a capacidade que ela tinha de exercer a sucção no seio materno e fomos desenvolvendo ao longo dos dias em que ficou internada", conta a fonoaudióloga. 

Persistência: Cecília mamando, ainda na UTIN, com o auxílio da fono
Persistência: Cecília mamando, ainda na UTIN, com o auxílio da fono (foto: Arquivo pessoal)

Além dos benefícios para a saúde de Cecília, a amamentação bem-sucedida foi uma vitória para Mariana, que escolheu dividir a experiência com outras mães e lutar contra a desinformação que prejudica outros bebês com trissomia 21 ou mesmo outras síndromes. 

Mas Mariana ressalta que não foi simples ou fácil. Sair da maternidade após 28 dias com a filha em aleitamento materno exclusivo exigiu dedicação e cuidado, não só da mãe, mas também da equipe responsável. Nos primeiros 15 dias, Mariana ordenhava o leite, que era ofertado para Cecília pela sonda, depois foi a hora de ir para o peito. "A fono nunca questionou a capacidade da Cecília, apenas buscou entender como ela conseguiria mamar." 

Com muita paciência, elas testaram diversas posições, ângulos, a mãe fazia uma pinça com o bico do peito para facilitar a sucção. Com a técnica das fonoaudiólogas, Cecília mamou oito minutos seguidos, momento marcante para a mãe. Na alta da UTIN, ela mamava em livre demanda. Em casa, passou o primeiro ano de vida em aleitamento exclusivo, compartilhando o peito da mãe com o irmão.

Cecília e Daniel mamando juntos
Cecília e Daniel mamando juntos (foto: Arquivo pessoal )

Outros mitos 

Além do aleitamento materno, Mariana comenta que Cecília desafiou diversos mitos envolvendo bebês com síndrome de Down. Para começar, ela critica o uso do termo 'bebê Down'. "Reduz o bebê ao diagnóstico, ele não é Down, ele tem uma síndrome. Essas mães não têm uma síndrome, elas têm um bebê como todos os outros e que precisa do mesmo cuidado. Talvez de mais paciência ou suporte, como fisioterapia e fonoterapia, mas é um bebê", desabafa.

A experiência de Cecília e Amanda é um exemplo de que essas crianças não são todas iguais, superando uma série de mitos e estatísticas. Apesar de ter precisado ir para UTI Neonatal logo que nasceu, Cecília foi uma prematura tardia, chegou ao mundo com 36 semanas e 5 dias, apenas dois dias antes de ser considerada um bebê a termo. 

O parto foi natural, outra barreira colocada injustamente a essas gestantes. Ela não tem cardiopatias, algo que as pessoas pensam que todos os bebês com trissomia têm, mas que atinge apenas 50% deles. 

Impeditivos 

Embora cada caso seja individual e precise ser avaliado de perto por profissionais capacitados para a determinação da conduta de aleitamento, existem alguns casos nos quais a amamentação pode não ser possível ou recomendada. 

Entre eles, a enfermeira e consultora pós-graduada em aleitamento materno Shirlley Maciel comenta sobre as mães em tratamento com quimioterapia, mães infectadas pelo HIV, HTLV 1 E HTLV, questões relacionadas à transmissão vertical de mãe para filho.  Os medicamentos tomados pelas lactantes também precisam ser discriminados e avaliados pelos profissionais, alguns deles podem trazer consequências graves.

No caso dos bebês, algumas condições de saúde também podem interferir. Por ser cansar muito facilmente, os recém-nascidos com cardiopatia graves podem ter mais malefícios do que benefícios, incluindo a perda de peso. “Não é impeditivo, mas devem ser acompanhados de perto”. Nos bebês com galactosemia, o aleitamento materno é contraindicado. A condição é uma doença genética rara que dificulta o processamento da galactose, um açúcar presente no leite.

Shirley acrescenta casos de questões anatômicas dos bebês, como as fissuras labiopalatinas, nos quais a maioria dos bebês não consegue organizar a pega e abocanhar a aréola. “O problema é decorrente de uma sucção débil e um vedamento labial ineficiente. As mães devem ser estimuladas a ordenhar o leite materno para manter a produção e o acompanhamento da dupla”, comenta. 

A especialista ressalta que os maiores desafios na amamentação são a falta de orientações e informações, além da sobrecarga física e emocional, falta de rede de apoio, falta de acolhimento e palpites indesejados. “Sempre vamos fazer o possível para obter sucesso na amamentação. É complexa, e requer estudo e acompanhamento da mãe, do bebê e da família. Infelizmente, em alguns casos, não será possível, mas em outros, como dificuldade na amamentação e baixa produção, conseguimos reverter”, completa. 

  • Persistência: Cecília mamando, ainda na UTIN, com o auxílio da fono
    Persistência: Cecília mamando, ainda na UTIN, com o auxílio da fono Foto: Arquivo pessoal
  • Cecília e Daniel mamando juntos
    Cecília e Daniel mamando juntos Foto: Arquivo pessoal
  • Cecília, na UTIN
    Cecília, na UTIN Foto: Arquivo pessoal
  • Cecília e Daniel mamando juntos
    Cecília e Daniel mamando juntos Foto: Arquivo pessoal
Ailim Cabral
AC
postado em 16/03/2025 06:00