
Por Eliana Lucena - Especial para o Correio
O gramado com árvores retorcidas na frente do restaurante universitário era irresistível depois do almoço na Universidade de Brasília. Em grupos, ouvindo os sotaques de todo o país, descansávamos, aguardando o início das aulas da tarde. Os papos eram sobre política, flertes, assuntos acadêmicos. Alguns preferiam curtir o incrível céu de Brasília em sua amplitude única. Dessa cena fazia parte um rapaz louro, de cabelos cacheados, com seus óculos de lentes grossas que quase escondiam os lindos olhos azuis. Sedutor ao extremo, inteligente, sagaz e firme em suas posições políticas, sempre sobressaía na roda. Abraçava, aconchegava e até despertava ciúmes. Essas imagens não saem do meu pensamento desde que assisti ao filme “Ainda estou aqui”.
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O jovem era Honestino Guimarães, estudante de Geologia, que presidia a Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília-Feub em 1967. Antes do convívio com ele no campus, em passeatas e assembleias de estudantes, como aluna recém-chegada de Belo Horizonte, tivemos um primeiro encontro na sala que ele ocupava no prédio de madeira na frente da reitoria. Gostava de conversar com cada calouro. No primeiro contato fiquei tensa, mas aos poucos a conversa fluiu, passando pelo quadro político no país, ideias sobre Ho Chi Minh, antigo líder norte-vietnamita, o imperialismo ianque, e perguntas sob o porquê da minha escolha pela UnB.
O líder estudantil também deixou um grande legado para todos nós. Foi preso quatro vezes. A última prisão ocorreu em 1973, e, como no caso do ex-deputado federal Rubens Paiva, que teve a sua história retratada no filme de Walter Salles, ganhador do Oscar 2025 de melhor filme estrangeiro, seu corpo nunca foi localizado.
Nos dois casos, houve relatos de seguidas torturas antes do desaparecimento. Duas famílias que, a exemplo de outras em todo o país, lutaram em busca da verdade. Em abril de 2014, Honestino Guimarães foi oficialmente anistiado post mortem pelo governo federal. O Ministério da Justiça determinou a retificação do atestado de óbito para que constasse como causa da morte "Atos de violência praticados pelo Estado". Já a UnB concedeu a ele o diploma post mortem pela luta em defesa da autonomia universitária e pela democracia.
A última imagem que tenho do colega no campus é dele, aos gritos, sendo arrastado pelos policiais de dentro do prédio da Feub até o camburão. Assim como na invasão anterior, ele passara antes dentro da Kombi azul da UnB entre os prédios da Colina, nos avisando da invasão iminente.
A vida interrompida de Gui, como era tratado pelos amigos, também estará em breve nos cinemas. O filme é dirigido pelo cineasta amazonense Aurélio Michilles, amigo e contemporâneo do líder estudantil na UnB. O protagonista é vivido pelo ator Bruno Gagliasso, que reforça a importância de levar a história às novas gerações. "A juventude precisa entender o que aconteceu. Por isso aceitei viver Honestino no cinema."
Chegou 1968. No mesmo gramado que frequentávamos, ouvimos em silêncio o anúncio da prisão de centenas de estudantes que participavam, em Ibiúna, São Paulo, do Congresso Nacional da UNE. A notícia do Ato Institucional número 5 também chegou de forma sombria. A partir daí, mais colegas presos, outros desaparecidos ou exilados, outros expulsos da universidade. A desinformação era terrível, aumentando o clima de medo e de desânimo.
Naquele momento, a UnB não era mais a mesma. Eu e outros colegas mergulhamos no jornalismo. Com os temas políticos censurados, as redações passaram também a receber denúncias sobre o avanço das políticas públicas para o Centro-Oeste e a Amazônia. Entre elas, relatos da expulsão e morte de indígenas, posseiros, seringueiros, ribeirinhos. Eram pautas que passavam pela censura e que contavam muito sobre aquele período. Conhecemos personagens fundamentais na luta contra aquele modelo predatório de desenvolvimento, entre juristas, antropólogos, bispos, missionários e líderes das comunidades atingidas.
Eunice Paiva, mulher de Rubens Paiva, interpretada no filme de Walter Salles por Fernanda Torres, após a morte do marido, formou-se em Direito e cumpriu importante papel na defesa dos direitos indígenas. Em seu trabalho incansável, está a luta pelo reconhecimento da terra do povo Zoró, que estava em vias de extinção com a chegada da estrada e, junto com ela, de garimpeiros, madeireiros e colonos. Antes viviam em isolamento, mas quase desapareceram. Eunice lutou e conseguiu a criação da área indígena, localizada no noroeste do Mato Grosso.
Conhecer cidadãos como Eunice Paiva e outros nomes da nossa história recente, que mesmo quebrados pela dor deixaram o seu legado, é fundamental para esta e para as futuras gerações. O desafio agora é compreender como a história de Rubens Paiva conseguiu furar a bolha de interesse das novas gerações. Foi incrível encontrar tantos jovens surpresos e emocionados nos cinemas, questionando e querendo saber mais. Que linguagem deve-se levar aos jovens mergulhados na velocidade de um mundo globalizado que cada vez mais flerta com regimes autoritários? Por tudo isso, ainda é bom estar aqui!
Eliana Lucena é jornalista
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