
Por Sérgio Leo - Especial para o Correio
Foi há pouco tempo, mas se espalhou como vírus: ligue o rádio ou a TV, e vão lhe informar que certa autoridade "reforça que"; algum comunicado "reforçou"; ou um entrevistado fez questão de "reforçar". Como se vivêssemos em um congresso de especialistas em cimento armado, engenheiros da novilíngua falam sempre em reforçar, onde antes as pessoas repetiam, enfatizavam, insistiam, ressaltavam.
Como demonstra o tradutor e escritor Caetano Galindo, no seu livro pequeno e magistral Latim em Pó, a linguagem está sempre incorporando novos termos, mudando o significado de antigos, trazendo contribuições de outras comunidades. A língua é viva e saltitante, mas essa vida não é nada simples. Tema constante dos cronistas, turma dedicada à escrita corrente, certas adulterações e maus-tratos impostos a nosso falar mereceriam uma delegacia especializada.
O preconceito de tamanho, por exemplo, é uma injustiça imposta a palavrinhas de extenso serviço prestado à comunicação, que passaram, coitadas, a ser preteridas, em favor de outras mais encorpadas. O humilde verbo "ter", sucinto e efetivo, parece ser alvo preferencial desse tipo de apartheid.
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Já não é novidade comentar a invasão de "possuir", no lugar de "ter", mesmo quando não se está falando de nada cuja posse seja possível. Um site educativo na internet ensina, por exemplo, que a matemática pode "possuir" diversas aplicações. Ainda se estivesse tratando de aplicações financeiras...
Mas "ter" é escanteado também por outras intrusões exóticas, como "apresentar". O mundo parece invadido por animadores de auditório: é o clima que "apresenta" calor intenso; a rodovia "apresentando tráfego lento"; a cidade que "apresenta relevo" acidentado. Já não basta a posse; o mundo todo agora é exibicionista.
Usar, também, saiu de moda. Da academia aos escritórios de contabilidade, a moçada prefere "utilizar", acrescentando letras inúteis a um ato tão singelo. O uso do cachimbo faz a boca torta, diz o ditado. Ditado esse que, na boca torta de nossos contemporâneos, qualquer dia vai mencionar a "utilização do cachimbo".
O verbo "realizar", quando não é usado viciosamente no sentido do inglês "realize" (compreender, entender), costuma também imiscuir-se onde não deveria ser chamado, expulsando o humilde e tão necessário "fazer". E tome escola que não faz, "realiza" segunda chamada: hospital que realiza transplante; governante que realiza discurso. Vivemos uma monarquia operosa, com realizações por todo lado.
As palavrinhas exiladas injustamente do convívio dos leitores e ouvintes poderiam formar um populoso sindicato para reivindicar o fim de sua marginalização e lutar por uma política afirmativa, de reinclusão, enquanto é tempo. A tarefa é urgente, até porque, pelo caminhar discriminatório dos falantes — e escreventes — contemporâneos, em breve será proibido discutir o assunto.
Afinal, já começa a ser difícil ver alguém propor uma discussão, ou mesmo um debate: cada vez mais, a turma agora quer saber de "problematizar". E, cá pra nós: de problemas, o mundo já está cheio.
Sérgio Leo e jornalista e escritor