No Natal, assim como em aniversários e outras datas comemorativas em que crianças costumam receber presentes, muitos dos filhos únicos surpreendem os pais pedindo por uma irmãzinha ou irmãozinho. E muitos deles, quando um novo bebê faz parte do planejamento familiar, de fato, recebem o "presente" do papai e da mamãe. Ter alguém com quem crescer pode ser uma dádiva. É um amigo, companheiro, uma outra criança para dividir segredos, travessuras e brincadeiras.
Mas algumas vezes, as circunstâncias da vida transformam essa relação fraternal em algo mais parental, trazendo novos contornos para o dia a dia dos irmãos. Antigamente, pessoas com necessidades especiais tinham uma expectativa de vida menor, devido às diversas particularidades de saúde que podem surgir, e acabavam partindo antes mesmo dos pais.
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Mas, atualmente, com o avanço da ciência, muitos chegam à terceira idade saudáveis e cheios de vida. E, seguindo o curso natural, os pais acabam morrendo antes, deixando, grande parte das vezes, a responsabilidade legal dos filhos com necessidades especiais para os outros filhos, sejam eles mais novos, sejam mais velhos.
Mônica Cuskelly, pesquisadora australiana que estuda a dinâmica familiar de pessoas com deficiências intelectuais há alguns anos, comentou em um estudo, publicado em 2000, que "irmãos dos adultos com deficiência intelectual, geralmente, esperam tomar para si pelo menos algumas responsabilidades atendidas pelos pais quando eles já não sejam capazes de executá-las".
Ela comenta ainda, mais especificamente em seus estudos sobre pessoas com síndrome de Down, que a decisão de assumir ou não os cuidados e os serviços relacionados aos irmãos é influenciada por uma série de fatores, entre eles a qualidade da interação desses irmãos durante a infância, criando ou não uma relação de parceria e amizade. Quanto melhor o relacionamento na fase de crescimento, maior a possibilidade de que o irmão assuma de bom grado a responsabilidade pelo outro.
O estudo de Mônica também reforça um fato muito debatido: as mulheres são a grande maioria no papel de cuidadoras, seja dos filhos, irmãos, companheiros e pais. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, apontam que 85% do trabalho de cuidado é exercido por mulheres. Na pesquisa, é ressaltado que, no Brasil, as mulheres gastam 21 horas semanais na função de cuidadoras, contra 11 horas gastas homens na mesma atividade.
E embora tragam, em muitos momentos, responsabilidades pelas quais não esperavam ou não se sentiam totalmente preparados, quando assumem os cuidados pelos irmãos, muitos experimentam um amor ainda mais forte por aquela pessoa que precisa deles. A admiração pelo trabalho antes exercido pelos pais também tende a aumentar.
De caçula a mãe
A vigilante Ana Lívia Fernandes, 40 anos, é a responsável legal pela irmã Adriana Fernandes da Silva, 51, há 18 anos, desde que elas perderam a mãe. A diferença de idade, no entanto, desaparece no diagnóstico de esquizofrenia e transtornos de humor de Adriana, que se transformou na quarta filha da irmã.
Se a vigilante compra um lanche diferente para um dos filhos, tem que comprar para a irmã também, que tem a idade mental de uma criança. "Eu fiquei com mais uma filha, hoje sou muito mais mãe dela do que irmã, e tenho mais cuidado do que tenho com os meus três filhos", conta Ana Lívia.
As duas têm 11 anos de diferença e não foram criadas juntas. Até os 16 anos, antes de apresentar as primeiras crises psiquiátricas, Adriana morava com o pai e a avó paterna. Depois de começar a ter diversos episódios e precisar ficar internada algumas vezes, a jovem foi viver com a mãe e a irmã.
As três viveram juntas por muitos anos, enquanto a mãe das duas cuidava de Adriana. Aos 18 anos, Ana Lívia casou-se e se mudou. Quando tinha um filho e estava grávida do segundo, aos 23 anos, perdeu a mãe e se tornou a responsável por Adriana.
"Amadureci na marra, tinha um bebê no colo, outro na barriga, a Adriana e estava sem a minha mãe, que era também meu apoio. Chorei muito e sofri por não saber como ajudá-la da melhor maneira, mas hoje encontramos nosso ritmo", conta.
Os sobrinhos, apesar de a chamarem de tia, tem em Adriana uma irmã. Uma das filhas de Ana gosta de escovar os cabelos da tia, pintar as unhas e fazer maquiagens. Adriana adora. A caçula tem na tia uma amiga, com quem adora brincar de tudo que tem direito, as duas gostam de jogar bola juntas.
Ana Lívia acompanha todas as consultas da irmã — as visitas à psicóloga ocorrem uma vez por semana e as ao psiquiatra de dois em dois meses. No dia a dia, depois do café da manhã, ela coloca a irmã para ler e escrever, mas somente quando ela está animada para a atividade.
Depois, é hora da caminhada matinal, que costuma acabar na banca de revistas, onde Adriana gosta de passar um tempo, vendo as pessoas indo e vindo. "Ela também pedala na bicicleta ergométrica e gosta de ficar no quintal", conta.
Lembranças do passado
Apesar de ser muito tranquila e ver em Ana uma mãe, Adriana vive no passado, lembra da adolescência e da infância, mas não retém as informações do presente, o que pode ser desafiador em alguns momentos. "Mesmo assim, ela me respeita muito. Se falar duro, ela obedece e, depois de muitos anos, eu aprendi a lidar com cada situação e a manter a autoridade com ela, senão pode ser mais difícil", conta.
Para a vigilante, cuidar da irmã nunca foi um sacrifício, mas, sim, um caminho natural que ela seguiu e segue com muito amor e carinho. O difícil, na visão de Ana Lívia, é entender que existe um limite para o que ela pode fazer em auxílio à irmã. "Chorava demais, me sentindo culpada e mal por não conseguir ajudar mais, não poder resolver os sofrimentos dela e, enfim, entender que é uma doença que eu não posso controlar", completa.
Desafios emocionais
A psicóloga Tiane Amaral comenta que os desafios emocionais ligados a assumir o papel de cuidador podem ser intensos e multifacetados. Ela comenta alguns deles:
- Sentimento de sobrecarrega: o peso da responsabilidade pode ser avassalador, especialmente ao conciliar as demandas do cuidado com outras áreas da vida pessoal e profissional. Pode surgir a sensação de que nunca há "tempo suficiente" para atender a todas as necessidades;
- Alterações no papel familiar: a dinâmica familiar pode mudar com o responsável assumindo um papel parental, o que pode gerar conflitos internos ou externos. A perda da "relação igualitária" entre irmãos pode ser difícil de aceitar;
- Culpa e autoexigência: sentimentos de culpa podem surgir ao acreditar que não está fazendo o suficiente ou ao priorizar momentos de autocuidado. Uma autoexigência excessiva pode levar a sentimentos de inadequação;
- Luto e aceitação: aceitar as limitações e as necessidades do irmão pode vir acompanhado de um luto pelo que poderia ter sido, especialmente se houver agravamento da condição ao longo do tempo. A aceitação de que nem tudo está sob controle é um processo emocionalmente desafiador;
- Isolamento social: cuidar de alguém com necessidades especiais pode limitar interações sociais, criando um senso de isolamento. Amigos e familiares podem não compreender a magnitude da responsabilidade, o que aumenta a sensação de solidão;
- Preocupação com o futuro: a incerteza sobre quem cuidará do irmão caso algo aconteça ao responsável é uma grande fonte de ansiedade. Planejar o futuro pode ser emocionalmente desgastante. É um grande impacto na saúde mental, incluindo estresse, ansiedade e até depressão.
Sempre juntas
Viúva, mãe de três, avó de cinco e bisavó de três, a aposentada Maria Rita Dornas de Oliveira Dantas, 78, e a irmã Maria Aparecida de Oliveira Dornas, 76, são grandes amigas desde a infância, e há mais de 30 anos moram juntas. Maria Aparecida, mais conhecida como Cidinha, tem um comprometimento cognitivo ocasionado por disritmia cerebral neonatal e, desde crianças, Rita tem um cuidado especial com ela.
"Somos muito amigas e sempre me senti um pouco responsável. Mamãe viajava muito a trabalho e, desde novinha, eu assumi esse papel de estar ao lado da Cidinha para tudo. Temos um irmão mais velho, mas de mulher eu sou a mais velha. Ela vem depois e, por fim, mais um irmão e uma irmã caçula, então esse papel sempre foi um pouco meu", conta.
A família sempre foi unida e dividiu os cuidados com Cidinha com carinho, compreensão e paciência. Até hoje, todos os irmãos se encontram para almoçar todo domingo, trazendo junto os filhos, netos, agregados e bisnetos.
Quando o pai delas morreu, a mãe e a irmã foram morar com Rita, os filhos já eram adultos e não foi difícil conciliar as demandas. Pela idade avançada da mãe, Rita foi assumindo cada vez mais responsabilidades, até se tornar a cuidadora legal de Cidinha, em 1994, quando elas perderam a mãe. "Nessa época, além de adultos, meus filhos já eram casados e tinham suas famílias. Não foi difícil me dedicar a ela. Hoje, moramos juntas, e um dos meus filhos veio ficar conosco".
A rotina é leve. Todos os dias Cidinha vai para a Apae, onde faz diversas atividades, sobre as quais adora falar para Rita quando chega em casa. Ela tem um celular, configurado por um neto de Rita, que usa para falar com os irmãos, e ajudou Rita com os filhos, já que adora bebês. "Quando me tornei mãe, ela vinha e ficava comigo, me ajudava a fazer meus filhos dormirem e sempre tivemos uma convivência muito fraternal e carinhosa."
A culpa e a responsabilidade
A psicóloga e psicanalista Sílvia Oliveira comenta que, na perspectiva psicanalítica, assumir essa responsabilidade pode ativar complexos inconscientes relacionados à culpa, à obrigação e à idealização do papel de cuidador.
"O sujeito pode se sentir preso em um conflito interno, entre o desejo de liberdade e a necessidade de responder às expectativas externas. A sobrecarga emocional pode também estar ligada à identificação com os pais, especialmente se o irmão com necessidades especiais era anteriormente cuidado por eles", explica.
A psicóloga ressalta a importância de explorar essas dinâmicas em processos terapêuticos para que a pessoa entenda a melhor forma para assumir e se posicionar nesse novo papel, que pode vir tanto quando ela já é mais velha e tem a vida estabelecida quanto no início da vida adulta, o que pode trazer desafios extras.
Na maioria das vezes, além de serem sobrecarregados com as novas responsabilidades, esses irmãos estão lidando com a morte de um dos pais e precisam navegar por todos esses sentimentos ao mesmo tempo. "O luto é visto como um processo necessário para a elaboração da perda. Negar ou reprimir pode levar à melancolia. É crucial que o cuidador encontre espaço para simbolizar essa perda", alerta Sílvia.
A psicóloga também reforça que é importante que os irmãos compreendam que o cuidado não é uma substituição do vínculo perdido com o pai ou a mãe, evitando uma sobreposição afetiva.
Tiane Amaral, psicóloga, é categórica quando fala na importância do autocuidado e da vivência do luto para exercer o papel de cuidador da melhor forma possível. "É importante reconhecer e validar o próprio sofrimento, dedicando momentos específicos para processar o luto, mesmo em meio às demandas Lembre-se: cuidar de si é essencial para cuidar bem do irmão."
Amigas antes de tudo
Embora venha acompanhada de muitos desafios e do luto pelos pais, quando uma pessoa assume o papel de cuidador de irmão, a vida pode mudar de uma maneira positiva, com uma relação de proximidade e amor que faça com que esses irmãos voltem para a infância.
A faturista Djania Tavares de Souza, 56 anos, viveu uma mescla de sentimentos quando se viu como a cuidadora oficial e legal da irmã, Márcia Tavares de Souza, 49, que tem deficiência intelectual. Ao mesmo tempo em que as duas se divertem juntas e são a principal companhia uma da outra, ela se viu em um papel de mãe que nunca desejou exercer.
Quando Djania tinha 13 anos e Márcia 7, elas perderam a mãe e, mesmo vivendo com o pai e mais dois irmãos, um deles mais velho, sempre foi ela quem teve mais cuidado com Márcia. “Por ser mais velha que ela e mulher, eu que acabei cuidando mais, fazendo as coisas do dia a dia com ela”, lembra.
Desde 2011, Djania se tornou oficialmente a cuidadora de Márcia. Elas moram em uma casa no mesmo terreno que os dois irmãos homens, e eles costumam ter momentos em que se reúnem para comer e conversar. “Apesar de não sermos muitos carinhosos fisicamente, porque isso não fez parte da nossa criação, somos muito unidos. Nos ajudamos e gostamos de passar tempo uns com os outros, e acho isso o mais importante”, comenta.
A dicotomia de sentimentos se apresenta quando ela considera que, desde nova, quando começou a namorar, nunca quis ter filhos, e no sentimento maternal que desenvolveu pela irmã, que com o passar dos anos tem se tornado cada vez mais dependente, um processo inverso ao que ocorre tradicionalmente na maternidade. “Deus me colocou nesse papel, querendo ou não, e hoje, o meu sentimento por ela é um amor de mãe muito verdadeiro, em que não me vejo sem ela ou deixando outra pessoa assumir esse papel”, comenta.
Equilíbrio
Conforme a autonomia de Márcia diminui, surgem alguns outros desafios. Um deles é relacionado a coisas mais simples, como tomar banho e comer na hora certa. “É até engraçado, porque nessas horas, quando digo que tem que fazer alguma coisa, ela responde que faz se quiser, que eu não mando nela”, conta Djania. Depois de alguns embates, ela entendeu que bater de frente não é a melhor solução, o que faz com que Márcia volte atrás e acabe fazendo o que precisa.
A psicóloga Tiane Amaral comenta que é comum que mulheres que assumem o cuidado de irmãos com necessidades especiais vejam a relação oscilar entre o fraternal e o maternal. “O desafio é equilibrar o afeto e a autoridade, mantendo o vínculo como irmãos enquanto desempenham o papel de cuidadora.” Para isso, ela afirma que é essencial estabelecer limites claros, respeitar a autonomia do irmão dentro de suas possibilidades e buscar apoio para não se sobrecarregar emocionalmente.
Quando o irmão desafia, Tiane comenta que é importante conversar com paciência, mostrando que as decisões são para ajudar, não para “mandar”. “Respeite sua opinião e envolva-o nas escolhas sempre que possível, reforçando que vocês estão juntos nessa. Nessa situação, é importante evitar uma postura autoritária, e apostar no diálogo. Explique as responsabilidades que assumiu, mostrando que suas decisões visam o bem-estar dele”, completa.