Cidade Nossa

Crônica Cidade Nossa: Cem anos em dez

Em uma reflexão sobre Brasília, José Manuel Diogo destrincha na crônica deste domingo as possibilidades infinitas da capital

Por José Manuel Diogo

De Lisboa, Londres ou Nova Iorque, Brasília pode parecer um enigma. Mas para um europeu, acostumado a cidades onde "o passado corre atrás da gente" — como dizia Vinicius de Moraes —, a capital brasileira é um contraste vertiginoso

JK sonhou com "cinquenta anos em cinco", mas o que ele deixou foi mais que um plano: foi uma ideia. Brasília desafia o olhar europeu por ser menos uma cidade e mais uma possibilidade aberta, fascínio que nasce do que Niemeyer chamou de "a curva que desafia o reto", onde a ousadia original do lápis cria oportunidades permanentes de reimaginar o espaço.

Brasília pode ser esse lugar onde a cultura se encontra com o futuro. Um festival de música, teatro, literatura ou cinema que cruze o Atlântico pode encontrar ali o palco ideal para uma nova narrativa: a da fala e da escrita comuns que não apenas revisitam a tradição, mas projetam algo novo. A de uma nova cidadania da língua.

A cidade, com seus eixos largos e horizontes sem fim, logo se percebe como o antídoto para os limites físicos e simbólicos de espaços onde o passado, moldado por tradições seculares, continua a exercer uma influência dominante sobre o presente.

A cidade foi feita para se mostrar. Desde o primeiro traço no papel de Lucio Costa, este estrangeiro sente a cidade como uma provocação: um centro imaginado para unir. Mas, e o que nela une o mundo? 

Mais do que suas linhas modernistas ou promessas de integração nacional, Brasília é uma ideia em potência — uma cidade que pode reconfigurar a sua vocação para se tornar o epicentro de uma nova mobilidade global. 

Arquivo pessoal - José Manuel Diogo, cronista

Brasília é um símbolo de ruptura porque existe nela uma extraordinária utopia funcional. Tem o que falta para se tornar um epicentro global; não pelo que já representa politicamente, mas pela mobilidade das pessoas e ideias que abriga. Mas o que ela constrói hoje? 

De alguma forma, os eixos de Brasília são práticos, mas também frios; ordenados ao rigor matemático, mas distantes. No mundo interligado de hoje, o que define a relevância é o trânsito; e é muito fácil imaginá-la como um polo de mobilidade internacional. 

Com a proximidade diária que hoje o aeroporto lhe desenha com a Europa a partir de Lisboa, Brasília tem o potencial de se tornar o Hub do sul Global, liderando a integração da inteligência artificial, economia criativa e sustentabilidade em escalas planetárias. 

Se a tudo isto a cidade sonhada incorporar ao centro de sua narrativa a sua gente e a sua diversidade, a estética do cerrado, a riqueza cultural de suas regiões periféricas e todas as vozes que nelas emergem, teremos uma Brasília aberta com algo de muito relevante a dizer ao mundo.

Em seus silêncios e vastidões, formalidades e devaneios, ouço em meus pensamentos a cidade dizer: Aqui, tudo é possível. Não por inocência, porque não a tem; nem porque ignora o passado, porque o carrega de forma mais leve; mas como um lugar único que pode chegar primeiro ao futuro.

José Manuel Diogo é presidente da Associação Portugal Brasil 200 anos. 

 


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