Por Sergio Leo / Especial para o Correio
Entre broncas e piadas, a moça que negou a janela do avião para uma criança birrenta cedeu lugar para a alta do dólar, que, não demora muito, deve ser trocada por outro assunto polêmico. Assim é a vida dos memes, criações que disputam nossa atenção no mundo da internet. Neste 2024, de treta em treta, poucas despertaram tanto interesse e marcaram lugar na história quanto uma banana.
Quem deu a banana à palmatória virtual foi o artista italiano Maurizio Cattelan, autor de obras como La Nona Ora, escultura realista do papa João Paulo II imprensado por um meteorito; ou América, um vaso sanitário funcional em ouro maciço cuja história inclui até uma oferta de empréstimo a Donald Trump.
Cattelan pespegou uma banana com fita adesiva a uma parede e vendeu três cópias da criação, numa feira internacional de arte, por até US$ 150 mil, em 2019. O que já era escândalo virou histeria quando, semanas atrás, o milionário chinês Justin Sun comprou uma das versões da obra por US$ 6,2 milhões — e, numa entrevista, comeu a banana, que, como previu o artista, será substituída por outra.
Há mais de século, o pioneiro da arte conceitual Marcel Duchamp também chocava muita gente com sua famosa Fonte, um mictório de porcelana, que, para o filósofo Michel Onfray, permitiu aos artistas matar a ideia platônica da arte como uma busca do Belo — e a tradição de usar materiais nobres como o mármore ou metais preciosos. Em troca, reforçou-se o papel do artista como criador capaz de questionar e perturbar o sentido das coisas, com o material que lhe vier à mão.
Ainda que você queira dar uma enorme banana para a arte contemporânea e suas obras bizarras, precisa admitir: neste 2024, nenhuma criação artística provocou tantas reflexões, discussões, paródias e críticas como a fruta do Cattelan.
E raras vezes uma obra deixou tão clara a conexão da produção e valorização da arte contemporânea com as igrejas do poder global que são as instituições do mercado financeiro hoje por trás do frisson nos leilões e nas feiras de arte, seus marchands, curadores e mecenas. Não à toa, o milionário que comprou e comeu a banana negocia criptoativos — moedas virtuais, como o bitcoin, transacionadas de modo alucinante nesse mundo superaquecido em crise permanente.
Saiba Mais
Curiosa coincidência: enquanto o Distrito Federal e o mundo descascavam a provocação de Cattelan, a arte contemporânea perdeu em dezembro uma de suas brasilienses mais famosas, Bia Medeiros, criadora, professora, respeitada, debochada e decidida. Chamava o que fazia de "fuleragem", e de "mixuruca" a efemeridade das obras com que animava a cena artística por onde passou, sozinha, com parcerias ou o grupo Corpos Informáticos, que ajudou a criar.
Também neste fim de ano, a ainda pouco conhecida comunidade artística de Brasília comemorou a seleção da revista especializada Select, das 10 instituições culturais mais destacadas do ano: nela, estavam quatro estrelas da arte no Cerrado: a galeria De Curators, na Asa Norte, a Pé Vermelho, em Planaltina, a Risoflora, em Ceilândia, e a Olho de Águia, em Taguatinga.
Vale conhecer. Fica o voto: que, em 2025, esse pessoal frutificando em Brasília mereça tanta atenção quanto as cascas de banana do irônico artista italiano.
Sergio Leo é jornalista