O sistema imunológico tem como função proteger o nosso corpo. Quando entramos em contato com substâncias ou microrganismos que podem nos causar algum mal, as células de defesa rapidamente reagem e desenvolvem anticorpos para combater a ameaça.
Porém, algumas vezes, podemos dizer que os defensores do corpo ficam "confusos" e começam a produzir anticorpos contra elementos comuns e que não necessariamente seriam riscos à saúde, fazendo com que nosso corpo reaja com espirros, coceiras, inchaços, entre outros alertas. E é assim que definimos as alergias, reações exageradas do sistema imune a determinadas substâncias.
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Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até o ano de 2030, metade da população mundial sofrerá com algum tipo de alergia, seja ela alimentar, seja respiratória ou cutânea. No mundo inteiro e também entre os brasileiros, as alergias mais comuns são as respiratórias, com destaque para asma e rinite alérgicas. A prevalência de reações respiratórias no mundo é de cerca 30% a 40% da população.
A médica imunologista e alergista do Hospital Santa Lúcia de Brasília Franciane de Paula da Silva comenta que, além de serem as mais comuns, as reações alérgicas respiratórias podem se manifestar em qualquer idade e nas mais diversas gravidades.
Embora existam alergias de todos os tipos que atingem milhares de pessoas da mesma forma e com os mesmos fatores desencadeantes, há aqueles que apresentam reações mais incomuns. Franciane destaca algumas delas, como a alergia ao frio, em que o corpo tem uma reação ao contato com temperaturas baixas; desencadeada pela atividade física; à água, em que o corpo apresenta erupções cutâneas após contato com água; e até ao Sol, chamada de urticária solar.
E se a vida das pessoas com as alergias mais comuns, sobretudo as alimentares, já traz uma série de desafios, como deve ser a rotina dos que convivem com as reações mais incomuns, que geram até mesmo a descrença de amigo e familiares?
Desafio profissional
Imagine só: você está numa aula, em um laboratório de enfermagem, veste luvas de látex para começar a prática e, de repente, começa a ter erupções na pele, prurido e até mesmo rompimento da pele, tudo isso sem explicação aparente.
Embora pareça uma situação saída de um seriado médico, foi o que aconteceu com a enfermeira Thalita Martins Alves Leite, 32 anos, e assim ela teve o primeiro episódio alérgico desencadeado por uma dermatite de contato com látex.
A alergia se torna ainda mais desafiadora na área profissional em que Thalita atua, já que as luvas são um item essencial para a proteção, tanto dela quanto dos pacientes, e, em sua imensa maioria, são produzidas com látex.
Além dos sintomas incômodos e de crises mais graves, em que toda a pele se rompia resultando em sangramentos e dor constantes, a alergia incomum também trouxe desafios inesperados. “No meu primeiro emprego, a rede hospitalar duvidou de mim e não queria disponibilizar luvas sem látex, por serem um material mais caro. Todo mês, tinha que apresentar um relatório para conseguir as luvas”, conta.
O tratamento é focado nos momentos de crise, e é feito com corticoides e pomadas à base de ureia. Mas o foco de Thalita é evitar completamente o contato com o material.
Em família
A psicóloga Thays Martins Alves Leite, 35 anos, irmã de Thalita, também sofre com crises alérgicas incomuns. Ela tem reações graves ao ter contato com qualquer tipo de pimenta ou até com o cheiro mais forte do alimento. “Sinto uma falta de ar muito grande. Depois da primeira crise, os médicos explicaram que eu tenho um edema de glote grave e, mesmo puxando o ar, não consigo respirar. Quando isso acontece, preciso correr para o hospital”, conta.
Além do receio constante sempre que come em algum lugar diferente e precisa esmiuçar os ingredientes usados em cada receita, Thays se vê obrigada a lidar com a descrença alheia, até mesmo de parentes, que, algumas vezes, chamam a restrição até de frescura.
“É complicado. As pessoas dizem que só tem um pouquinho, que posso comer e não dá nem para sentir, mas não entendem que não importa a quantidade. Em uma crise séria que me levou ao hospital, bastou ter um pote grande de pimenta em conserva na mesa do restaurante para que eu passasse mal”, conta.
A descoberta veio cedo e poupou Thays de muitas crises. Aos 7 anos, foi catar pimentas-malaguetas que o pai plantava e teve o primeiro episódio que a levou ao hospital, onde ficou em observação por dois dias. Aos 12, depois de uma crise de coceira em que não identificou a causa, teve uma reação ao polaramine e hoje ri da ironia de ter alergia a um antialérgico.
Embora nunca tenha investigado as causas das alergias, o bisavô das irmãs também é bastante alérgico e elas acreditam que o componente genético é a causa mais provável. O foco das duas é evitar o contato com os agentes alérgenos de toda forma e falar mais sobre o assunto para que as pessoas parem de duvidar ou questionar os cuidados necessários.
O caso da jovem Thais Medeiros, que teve uma reação grave e precisou ser internada depois de cheirar um pote de conserva de pimenta na casa no namorado, em Goiânia, foi um alerta para que esse tipo de situação seja levada mais a sério. Ela precisou ser reanimada, chegou a ficar internada na UTI e passou quase um ano internada, entre idas e vindas. Hoje, em casa, ela se recupera de uma lesão cerebral e faz fisioterapia para recuperar, aos poucos, os movimentos.
Genética e outros fatores
A especialista em Alergia e Imunologia pela Associação Brasileira de Alergia e Imunologia Fernanda Casares Marcelino, integrante do corpo clínico da Imunolife e Alergia do HRAN, explica que a história familiar tem grande influência no desenvolvimento de várias alergias, mas não é a única causa para o surgimento de uma alergia.
“Sem dúvida nenhuma, a influência ambiental é primordial para o desenvolvimento de alergias”, comenta Fernanda, que cita inúmeros fatores externos que podem desencadear reações alérgicas de todos os tipos no organismo. Entre eles estão a poluição ambiental; a exposição precoce a agentes infecciosos, como ocorre em creches; o contato com alérgenos, como ácaros, mofo, epitélios de animais e pólens; o uso abusivo de medicamentos; a exposição a diversos produtos químicos presentes em cosméticos — quanto mais precoce e intenso o contato, maior o risco; e a ingesta de alimentos ultraprocessados.
Mudanças hormonais também podem influenciar, e algumas alergias podem ter seu curso alterado na gravidez ou na menopausa.
Cuidado na hora de comer
Além de serem levadas a sério, é importante que as pessoas estejam atentas aos sinais mais leves de reações alérgicas, que podem evoluir quando o contato com o agente causador continua. Com a chegada das festas de fim de ano, é importante que os alérgicos fiquem atentos à presença de castanhas e temperos comuns nas receitas natalinas. Os que não têm alergias conhecidas também precisam ficar atentos, caso apresentem algum sintoma diferente, como coceiras nas vias aéreas e dificuldade para respirar.
Segundo a OMS, cerca de 10% da população mundial em países desenvolvidos sofre com algum tipo de alergia alimentar, o que significa um número aproximado de 250 milhões de pessoas. A Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) estima que, no Brasil, 2% dos adultos e 8% das crianças até 2 anos apresentam essa forma da doença.
Em 90% dos casos, as reações se dão contra soja, amendoim, ovo, castanhas variadas, trigo, peixes e frutos do mor e leite de vaca, mas nos 10% restantes, encontramos reações aos alimentos mais variados.
Lívia Nogueira convive há 10 dos seus 24 anos com uma condição, no mínimo, inusitada e, ao mesmo tempo, mais comum do que se imagina. Ela não pode comer banana, mamão, uva e kiwi. A jornalista tem alergia à frutose desses alimentos — os diagnosticados até agora.
Com uma infância e adolescência com alimentação comum, ela demorou a entender que os episódios de irritação na pele e dificuldade respiratória estavam sendo causados pelo consumo de banana, a fruta que, até hoje, é a que causa uma resposta mais grave do organismo.
"A título de explicação: o grau de sensibilidade 'muito elevado' a algum material é de valores acima de 17,49kU/L (nível de imunoglobulina, um agente imunológico) no organismo. A minha taxa com a banana é de 24,70kU/L. Então, é realmente uma resistência muito forte e rara, se considerar o nível e o produto ao qual se refere", ressalta Lívia.
As reações variam, indo desde irritações na língua, nos olhos e na garganta, até empolamento na pele e fechamento de glote, além de dores no estômago. Com o tempo, outras frutas também começaram a causar mal-estar. "O kiwi eu sequer provei. Manuseei alguns pedaços e a reação surgiu."
No início, por não entender o que estava causando as reações alérgicas, Lívia teve episódios mais graves. Em um deles, depois de tomar uma vitamina de banana, a glote fechou e ela passou por minutos de desespero com uma obstrução total da respiração até tomar dois medicamentos e vomitar.
Além de ter que se privar dessas frutas e de uma série de receitas que as têm como ingredientes, a frustração é constante, pois até mesmo o cheiro ou o contato com louças que foram usadas para as frutas pode causar reações em Lívia.
Além da falta de pessoas para compartilhar experiências, ela se depara com a descrença quanto à existência do diagnóstico e até mesmo a falta de sensibilidade de algumas pessoas que acham que ela está de brincadeira. "Muitos consideram cômica uma alergia tão incomum. É nesse momento que o cuidado entra, porque, quando está nesse tom, é possível que a sensibilidade seja relativizada e colocada até em 'teste', o que pode ser fatal. Tenho sempre atenção a isso", ressalta.
Tipos de alergia
As alergias são divididas entre respiratória, cutânea, alimentar e medicamentosa. De acordo com a médica imunologista e alergista do Hospital Santa Lúcia de Brasília Franciane de Paula da Silva, há também graus de gravidade, sendo eles leve, moderado ou grave.
Poeira, ácaros, fungos, pólen e pelos de animais estão entre os principais gatilhos para uma crise de alergia que acomete as vias aéreas, em uma crise de alergia respiratória. As doenças mais comuns pelas quais esse tipo de alergia se manifesta são a asma e a rinite alérgica.
No caso da asma alérgica — diferentemente da asma, que pode ter outras causas —, o organismo reage ao componente estranho, gerando um processo inflamatório das vias aéreas, resultando em sintomas como chiado, aperto no peito, tosse e falta de ar nos casos mais severos.
Na rinite alérgica, a inflamação acontece, em maior parte, na mucosa do nariz, trazendo sintomas como crises de espirros, coceira no nariz, olhos e garganta, coriza excessiva e nariz congestionado. Franciane comenta que, durante a infância, os homens costumam apresentar mais quadros de asma do que as mulheres, estatística que se torna mais equilibrada na idade adulta.
A médica acrescenta que, nas crianças, as alergias alimentares a leite e ovos e dermatite atópica são mais comuns. Nos adultos, a rinite e reações a frutos do mar são mais vistas; e nos idosos, a alergia mais comum é a medicamentosa.
A alergia cutânea causa reações inflamatórias na pele, como coceiras, prurido, erupções e inchaço, além da vermelhidão. As mais comuns são a urticária, muito relacionada a picadas de insetos e substâncias químicas, e a dermatite de contato, causada pelo contato com elementos de produto de higiene, perfumes e cosméticos.
A dermatite de contato é mais comum em crianças, assim como a maioria dos quadros alérgicos, como explica Gesmar Rodrigues, médico alergista do Hospital DF Star, da Rede D’Or. O médico acrescenta a dermatite atópica entre as mais prevalentes. “Ela costuma afetar as dobras corporais, nos braços e joelhos, mas também pode surgir na face (bochechas), em bebês, ou no pescoço, mãos e pés, em adultos”, completa o médico.
As alergias alimentares, como explica a especialista em alergia e imunologia pela Associação Brasileira de Alergia e Imunologia Fernanda Casares Marcelino, dividem-se, em maioria, entre reações à proteína alimentar IgE, esofagite eosinofílica, doença crônica e alérgica que causa inflamação no esôfago ou da síndrome da enterocolite induzida por proteína, uma alergia mais rara.
Costumam ser desencadeadas por alimentos como amendoins, nozes, frutos do mar, leite, ovos, trigo e grãos de soja. Os sintomas variam entre os gastrointestinais, como vômitos, dores no estômago e diarreia, e os cutâneos e respiratórios, como coceiras, vermelhidão, fechamento da glote e anafilaxia.
A alergia medicamentosa é bastante comum, principalmente em pessoas mais velhas. São reações adversas e inesperadas ao uso de determinados remédios. Normalmente, na primeira exposição, o corpo cria os anticorpos e, na segunda, apresenta uma crise alérgica. A maioria dos medicamentos que causam alergia são anti-inflamatórios e antibióticos.
E a cura?
Franciane ressalta que, em quadros alérgicos, não se fala de cura, mas, sim, de tolerância. “ É possível adquirir tolerância a algumas alergias, embora isso dependa do tipo de alergia, da gravidade e do tratamento. Ela ocorre quando o sistema imunológico deixa de reagir exageradamente ao alérgeno”, explica.
Da mesma forma que em algum momento da vida o organismo passa a ter uma reação exagerada àquele elemento, com o uso de medicamentos e tratamento, ou até mesmo de maneira espontânea, ele passa a ter maior tolerância e reações menos intensas.
E é assim, com bastante tolerância, acompanhada de antialérgicos, que a pensionista Maria Aparecida Pereira, 66 anos, lida com as alergias a “um tanto de coisas”, como ela mesma define. Ainda criança, descobriu que colocar grampos na cabeça ou pegar em uma maçaneta descascada, trariam reações como irritabilidade na pele, coceira, crises de espirro e coriza. O cheiro de metal, assim como de grama, cimento molhado e cigarro, está entre os que não são bem aceitos pelo seu organismo.
Quando descobriu o lúpus, doença autoimune, há 26 anos, as alergias pioraram. Cida, como é conhecida, não pode consumir frutos do mar nem frutas como melancia e caju. O mais curioso é que, mesmo com tantas alergias incomuns, ela não tem nenhum tipo de reação à poeira, como a maioria dos alérgicos.
E mesmo com as restrições, Cida trata o assunto com bom humor e entende que, tomando os cuidados necessários e estando sempre com um antialérgico à mão, não terá maiores problemas.
Gravidade das crises
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Leve: coceira ou espirros ocasionais, olhos lacrimejantes ou vermelhos (conjuntivite alérgica), erupções cutâneas (urticária localizada), náusea leve e desconforto abdominal.
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Moderada: tosse persistente, dificuldade moderada para respirar (sibilos), sensação de aperto no peito, urticária mais extensa, inchaço em áreas como lábios, olhos ou mãos (angioedema moderado), vômitos e diarreia.
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Grave: choque anafilático, dificuldade respiratória, hipotensão, tontura ou desmaio, batimento cardíaco acelerado ou irregular e risco de morte.
Alergias ao redor do mundo, segundo a OMS
- 300 milhões de pessoas sofrem com asma alérgica
- 400 milhões de pessoas sofrem com rinite
- 250 milhões têm um ou mais tipos de alergia alimentar
- 25% da população já desenvolveu reações alérgicas a algum tipo de medicamento
- No Brasil, 61 milhões de pessoa sofrem com algum tipo de alergia