Por Tarciano Ricarto / especial para o correio
No traço do urbanista Lucio Costa, Brasília, a cidade dita sem esquinas é uma grande encruzilhada, onde dois eixos principais (o Rodoviário e o Monumental) se interceptam e definem o modo de ser da capital brasileira. Quando apresentou o projeto de Brasília, o urbanista explicou que o traçado "nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz".
Embora a cruz tenha sido o risco original no papel, a imagem que prosperou para definir o Plano Piloto da cidade foi a de um avião. Os braços norte-sul foram arqueados para adaptar o desenho inicial da prancheta ao relevo do lugar. Imageticamente, sobreviveu a ideia de um Eixo Monumental, como corpo desse avião, e de um Eixo Rodoviário, como suas asas, divididas em Asa Norte e Asa Sul.
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É nesse entroncamento, erguido com muito concreto e pavimentado com muito asfalto, que pulsa e fervilha a Brasília de verdade, cheia de vida, que continua a ser construída — agora, por aqueles que podem ser chamados de candangos modernos. São eles que diariamente "migram" das cidades do Distrito Federal e do entorno goiano para esse ponto de convergência: a Plataforma Rodoviária, onde as duas linhas se interceptam.
Essa plataforma é uma superestrutura que conecta pistas de veículos e passeios de pedestres em três níveis: um superior, que liga basicamente as regiões de habitação, passando pelos Setores de Diversão Norte e Sul; um inferior, que faz a conexão da cidade no sentido leste-oeste, para quem vai e vem na direção da Esplanada dos Ministérios, pelo Eixo Monumental; e um subterrâneo (o chamado Buraco do Tatu), que funciona como uma ligação mais direta no sentido norte-sul da cidade.
É bem no meio desse complexo, ocupando parte do nível superior e inferior, que está localizado o principal terminal de ônibus urbano do Distrito Federal, a Rodoviária do Plano Piloto, que centraliza o burburinho popular e exibe a mesma bagunça típica de qualquer outro grande centro urbano. Vem de lá o movimento constante de gente apressada que parte da região central e se distribui por todos os arredores da Plataforma Rodoviária. Essa dinâmica desfez a imagem sofisticada e poética idealizada para o local por Lucio Costa e recriou uma outra, mais real e palpável.
Quando ele projetou a plataforma, pensou numa estrutura para também sediar o centro de diversões da cidade, que seria, segundo o urbanista, uma "mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées". No projeto original, a região, margeada pelo setor cultural contíguo, deveria abrigar ópera, restaurantes, casas de espetáculos, cafés, casas de chá, bares, cinemas, teatros... Ou seja, a Plataforma Rodoviária não seria um local apenas de passagem ou de ligação, mas sobretudo de permanência e de ocupação.
Porém, o que Lucio Costa percebeu ao retornar a Brasília nos anos 1980 foi uma plataforma bem diferente da projetada no papel: "invés daquele centro cosmopolita requintado que eu tinha elaborado, (o local) tinha sido ocupado pela população periférica, a população daqueles candangos que trabalham em Brasília. Era o ponto de convergência, onde eles desembarcavam e havia então esse traço de união, era um traço de união entre a população burguesa, burocrata, com a população obreira e que vivia na periferia".
O urbanista nunca imaginou que, anos depois, o terminal de ônibus, também projetado por ele, viria a ser a grande atração daquela região, a ponto de o local passar a ser identificado e conhecido, de forma resumida, como a "Plataforma da Rodoviária" e não como (o que deveria ter sido) a "Plataforma Rodoviária", com todo o seu glamour e pompa.
Se tudo o que está em volta daquela região central ganhou vida própria, a sua essência está preservada, e a história está aí para contar. Recentemente, durante as obras realizadas no chamado "Buraco do Tatu", no nível subterrâneo da plataforma, os operários redescobriram o local do "Marco Zero" de Brasília. Foi lá onde, na década de 1950, foi fincada a "estaca zero", que serviu de referência às demais medições topográficas para a construção do Plano Piloto.
Agora, devidamente identificado no chão e na parede do "Buraco do Tatu", bate — preservado — o coração de Brasília, cercado de rodoviária por todos os lados. É o local exato onde os eixos da cruz (ou do avião, para quem preferir) se interceptam e marcam a pulsação cadenciada de um vaivém de gente que, na vida real, deu novo significado àquilo que foi traçado na prancheta do urbanista.
Para Lucio Costa, nada de decepção: "Foi o Brasil de verdade, o lastro popular que tomou conta da área. Isso deu uma força enorme à capital, me fez feliz de ter contribuído involuntariamente para essa realização".
Tarciano Ricarto é jornalista