Especial para o Correio — Cláudio Ferreira
Há uma crença generalizada de que o brasiliense não se importa com os vizinhos. Como toda generalização, é apenas uma meia verdade. Há, sim, os moradores de prédios que descem do elevador de olhos baixos para nem cumprimentar os outros passageiros. Mas existem também a solidariedade, a boa relação e a colaboração com quem mora nas casas ao lado ou no mesmo bloco.
O noticiário, infelizmente, expõe um lado mais grave desta relação: o ódio entre vizinhos. Dois episódios recentes me assustaram, ambos resultantes do volume alto da música. Logo a música, esse bem da humanidade. No primeiro caso, em um condomínio de prédios, a síndica admitiu que "ficou cega" de raiva e atingiu o morador barulhento com uma barra de ferro. No outro, um homem deu um tapa em uma mulher por causa do som alto.
O ódio de que falou Ana Dubeux na coluna do último domingo não se restringe ao homem bomba que espalhou explosivos pelo centro de Brasília. Está cada vez mais presente no nosso cotidiano, nas situações mais rotineiras, partindo de cidadãos comuns. Ele se manifesta até contra aquelas pessoas que fazem parte do nosso dia a dia, conhecidos com quem eventualmente já compartilhamos momentos de paz.
Alunos de uma faculdade particular de São Paulo "xingaram" outros estudantes, desta vez da USP, de "pobres" e "cotistas". Foi durante um jogo de handebol no interior do estado. Em vez de questionar o sistema de cotas, foi mais fácil exercitar o racismo.
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No trânsito, não é raro acompanharmos casos de motoristas que se sentem ultrajados e empreendem longas perseguições para "tomar satisfações" com o outro condutor que, porventura, tiver feito uma barbeiragem. Se um dos dois estiver armado, as consequências pioram. Abandonamos a prática de relevar erros alheios em nome de um bem-estar comum.
Também perdemos a capacidade de discordar civilizadamente. A troca de ideias, a tentativa de convencer com argumentos, tudo foi por água abaixo. Agora temos uma legião de "donos da verdade", que impõem sua visão de mundo como uma sentença judicial. Da política à criação dos filhos, dos rumos da economia ao gosto musical, tudo agora é uma guerra de ideias — e há sempre a necessidade de que alguém seja o vencedor.
O diálogo foi substituído pela ofensa imediata — culpa das redes sociais, onde estamos longe dos interlocutores e podemos esbravejar à vontade? Ou já era uma vontade latente que só encontrou a oportunidade?
Talvez todos esses episódios — das bombas da Praça dos Três Poderes aos xingamentos dos estudantes/torcedores — possam nos levar à reflexão e resultar em um pacto individual. O mundo não está discutindo uma transição energética, para trocar o petróleo por energia limpa? Que tal a gente também fazer isso individualmente, desistindo do ódio como combustível?
Em vez de querer matar o político ou o juiz com o qual não concordamos, desejar que ele deixe o poder ou mude de atitude. Em vez de se enfurecer com o suposto privilegiado das cotas ou a pessoa que tem a sexualidade diferente da minha, olhar para o próprio caminho de privilégios e dificuldades.
Na vida cotidiana, é preciso descer um degrau antes da fúria. Para quem quiser alguns exemplos concretos de como pular essa última barreira da civilidade pode acabar mal, vale a pena assistir Relatos selvagens, longa-metragem argentino. Além das situações familiares a todos nós, o filme mostra que qualquer um pode estar mais perto do ódio do que parece.