Cidade Nossa

Crônica da Cidade: o amor — também — é surdo

Sergio Leo -  (crédito: Divulgação)
Sergio Leo - (crédito: Divulgação)

Por Sergio Leo, especial para o correio 

O IBGE fala em crescimento do setor de serviços, imagino que parte disso seja o aumento na frequência dos lugares para se comer à noite. O lado ruim da coisa é que os restaurantes apelam a mesas cada vez mais próximas; adeus privacidade.

À minha frente, por exemplo, ouço um homem careca e de cavanhaque grisalho contar que trabalhou numa start up, cercado de gente novinha. "Como você disse, a gente tende a achar mais bonitas as pessoas mais jovens", diz ele à senhorinha madura em frente, de cabelo joãozinho, sapato de ponta fina e uma tatuagem no ombro que não consegui identificar se é um cedro ou um brócolis.

Ele conta que foi a uma reunião de amigos da juventude e ficou meio chocado ao constatar que as moças "gatinhas" de sua época já não eram como se lembrava. "Será que elas também olhavam os homens e pensavam a mesma coisa?"

Olho para o sujeito. Vai por mim, meu caro: elas pensavam a mesmíssima coisa. Se os outros homens estavam com sua aparência, elas também pensavam.

É um tanto deselegante o assunto, o comentário que ele acabou de fazer para a senhorinha à frente. Mas ele se apressa a seguir na conversa, que, percebo logo, é parte de uma discreta dança de acasalamento de fim de noite.

"As mulheres são mais críticas com elas, mulheres, do que nós mesmos, homens, entre nós", reconhece, generoso. Ela diz algo, talvez lembre que certamente é uma das "gatinhas" que ele hoje exclui da categoria. Ele estende a asa, gentil:

"Poderia dizer que no seu caso não é verdade", jura. "Sem contar que não conhecia você naquele tempo."

Ela faz charme, ajeitando a manga sobre o brócolis tatuado no braço:

"Não teria valido a pena..."

"Acho que teria."

Ela disfarça. Pelo tom de voz de ambos, poderiam estar debatendo sobre os riscos de pedir para se tatuar uma árvore no ombro; mas está claro o rumo do papo:

"Acho que tem uma coisa; como você disse: embora o físico não acompanhe, a gente melhora sem dúvida, com a idade", diz ela. Ele fala algo; ela retoma o ponto:

"Isso é a grande m... de envelhecer: a gente vira uma pessoa melhor, só que o físico não acompanha. Ah, eu, com a cabeça de hoje, há 20 anos..."

Ele emenda, compreensivo:

"Para um cara como eu, com 48 anos, você vai perguntar: não interessam mulheres novinhas? Interessa; são bonitas... mas, e uma mulher mais velha? Talvez no atacado não, mas, no varejo, não é verdade."

Varejo??? Atacado???! Começo a acelerar no meu creme de champignons; esse cara me deprime. Mas ela, claramente, está interessada. Ele, apesar de grosseiro, não deve ser de todo um mau sujeito; comentou três vezes que lhe falta vocabulário; tem alguma consciência de que é um legítimo representante de nossa época tosca, e, a seu modo, repete variações em tom elogioso sobre o tema "a idade não determina o poder de atração de uma mulher". Capaz até que terminem a noite aos beijos. Ela sorri.

Não vou ficar para conferir. Amanhã tenho pilates. Pobre senhorinha do ombro de brócolis.

Sergio Leo é jornalista e escritor, autor de Mentiras do Rio (Ed. Record).

 

postado em 17/11/2024 06:00
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