Especial

Roteiro de fé: mais do que ver o mundo, peregrinar é escutar

Bem diferente do turismo religioso, a peregrinação vai além de conhecer locais sagrados. É o sentido da escuta que precisa estar aguçado nos estudos, liturgias, missas, preleções e liturgias

Todos os dias, no período de 25 de março a 1º de novembro, sempre às 21h, fiéis acendem suas velas e caminham juntos para a Gruta de Massabielle, em Lourdes, na França. A chamada Procissão Luminosa ou Procissão das Velas é o encontro de pessoas que partem de todo canto do mundo para chegar ao local onde a camponesa Bernadette Soubirous, de 14 anos, avistou pela primeira vez, em 11 de fevereiro de 1858, a imagem de Nossa Senhora. Algumas vão em busca de cura; outras para expressar gratidão. Há ainda os que desejam renovar sua fé ou mergulhar em profundo silêncio.

A aposentada Tânia Mendes, 66 anos, partiu de Taguatinga, no Distrito Federal, para esse encontro. Viúva, mãe de três filhos e avó de três netos (a quarta a caminho), ela ganhou a viagem da nora. Nascida em Belo Horizonte, é habilidosa com as artes manuais. Bordadeira, tricoteira e calígrafa, é dela o traço na ata da posse de Dilma Rousseff subscrita no livro da Presidência da República, o mesmo que estampa a posse de Juscelino Kubitschek. Foi uma das maiores emoções de sua vida. Mas, em Lourdes, Tânia viveu outro momento daqueles difíceis de descrever.

Ana Dubeux/CB - Moradora de Taguatinga, Tania Mendes realizou um sonho: "A gente volta melhor. Não tem como voltar a mesma pessoa"

"Eu já tinha visto a procissão pela TV, mas, pessoalmente, foi uma experiência muito profunda, não consigo nem explicar", diz. Mas ela tenta. Tânia conta que as peregrinações religiosas são como um mergulho no silêncio para um encontro consigo mesma, com o equilíbrio, com Deus.

"A gente volta melhor, não tem como voltar a mesma pessoa. Alguma coisa a gente sempre descobre sobre si mesmo. Muitas vezes, a gente fica se perguntando: O que eu estou fazendo aqui neste mundo? Por que eu vim nesta família? E, conforme a gente vai ouvindo as preleções, os testemunhos, visitando os lugares sagrados, é como se as respostas fossem chegando", conta Tânia.

Tânia é uma das pessoas que fazem parte do grupo que acompanha o roteiro programado pela Comunidade Religiosa Obra de Maria, entre 9 e 22 de outubro de 2024. Os peregrinos passaram por Lourdes, na França, onde ocorreu 1º Congresso Internacional de Cura e Libertação; também por Madri, Toledo, Salamanca, Zaragoza, na Espanha, com visita ao Santuário de Nossa Senhora do Pilar, e Fátima, em Portugal, onde os fiéis participaram de dois dias do 2º Congresso Mariano Internacional (veja os detalhes nos boxes).

Curas milagrosas

Fotos: Ana Dubeux/CB/D.A Press - 2024. Revista do Correio. França. Bebendo na gruta de Lourdes

Lourdes, a primeira parada, é um lugar de energia impressionante. O Santuário de Nossa Senhora de Lourdes é um destino de peregrinação conhecido e tem uma área de 51 hectares, com 22 locais de culto, tudo construído ao redor da gruta onde ocorreu a primeira e as demais aparições de Nossa Senhora à menina Bernadette. Desde então, o número de visitantes foi crescendo e a estrutura para abrigar peregrinos, também.

"Lourdes é um dos santuário mais visitados do mundo, tem um grande hospital, ligado ao Vaticano, para analisar as curas milagrosas que acontecem aqui. É um santuário da cura e dos milagres. Tem as águas da gruta, que são curativas, a procissão… A gente faz muito evento em Roma, Jerusalém, e tinha esse pensamento de vir aqui. O nosso desejo é de aprofundar a fé em um santuário dedicado à cura", explica Gilberto Barbosa, fundador da Comunidade Obra de Maria.

Luzia Santiago, da Rádio Canção Nova, que também conduz os peregrinos, explica a dinâmica. "Temos o Evangelho, a palavra de Deus, os testemunhos e as pregações, então tudo se realiza. As pessoas vêm para serem curadas em Lourdes, e curadas, elas se libertam de todos os males. Mas todos nós também precisamos dessa graça e de libertação", afirma.

Papa no Pentecostes em maio

Ana Dubeux/CB - A Procissão das Velas (e) é um momento de bastante emoção para os fiéis. Eles caminham até a Gruta de Massabielle (acima), em Lourdes, na França, onde Nossa Senhora apareceu para uma pastora, no século passado

As amigas brasileiras Maria Conie Sousa, Neide Teixeira e Lucília Frois, que moram nos Estados Unidos há mais de duas décadas e integram o grupo de peregrinos, fazem planos de voltar a Europa no próximo ano, em mais uma edição do Pentecostes internacional da Obra de Maria e Canção, em Roma. Já está confirmada a presença do papa Francisco, segundo Gilberto Barbosa. "2025 será um ano jubilar, o que torna a data ainda mais simbólica para a igreja. Se os ventos ajudarem, a gente volta", comenta Neide.

Festa em Recife pelos 35 anos da Obra de Maria

A Comunidade Católica Obra de Maria é uma instituição com sede na cidade de São Lourenço da Mata, no Grande Recife. Fundada em 1990 por Gilberto Gomes Barbosa e Maria Salomé, tem como missão evangelizar e promover ações de caridade, inspirada pela devoção a Nossa Senhora. A Obra de Maria conta com uma agência própria de peregrinações, que organiza viagens religiosas para os principais santuários do mundo.

Atualmente, a comunidade tem mais de 5.100 missionários, que realizam obras sociais, como a construção de creches, escolas, internatos, hospitais e centros de reabilitação. A Obra de Maria atua em mais de 60 países, levando evangelização e auxílio humanitário às comunidades mais necessitadas, e é reconhecida pelo Vaticano.

Em janeiro de 2025, a Comunidade Obra de Maria celebrará seus 35 anos de fundação com uma grande comemoração na Arena Pernambuco, reunindo fiéis, autoridades religiosas e missionários de todo o mundo. O aniversário vai contar com shows de frei Gilson, irmã Kelly Patrícia, e também de padres-cantores, como Marcelo Rossi e Fábio de Melo.

Peregrinação não é turismo religioso

Fotos: Ana Dubeux/CB/D.A Press - Frei Josué, da Comunidade Mel de Deus, padre Roger e padre Edimilson durante o Seminário de Cura e Libertação

Padres de Brasília e do Entorno também acompanham e fazem celebrações em diferentes pontos da jornada. O padre Roger Luís, da Canção Nova de Brasília, fez homilias potentes em Lourdes, Zaragoza e Toledo. Falou com fervor sobre a busca da cura interior, tão necessária nos dias de hoje, como foi para ele, que teve uma adolescência difícil e andou por caminhos tortuosos. Frei Josué Pereira de Sousa, da Comunidade Mel de Deus, de Luziânia, também participou das missas e preleções.

Os religiosos dão o verdadeiro sentido da peregrinação, que é totalmente diferente de turismo religioso. Muito além das visitas aos locais sagrados, os peregrinos vivem práticas diárias de estudos bíblicos, de liturgias, dos congressos eucarísticos. Uma espécie de intensivão sobre as coisas de Deus, de Nossa Senhora, de Jesus Cristo, dos santos.

A imersão nos estudos da religião é também uma oportunidade de ouvir histórias fascinantes narradas por oradores extremamente talentosos. Padre Roger, por exemplo, contou a história de São João da Cruz, quando o grupo passava por Toledo, na Espanha. Em 1568, João tornou-se o primeiro padre carmelita descalço e viveu momentos de extrema felicidade, num casebre sem qualquer luxo. Perseguido pelo crescimento da ordem dos descalços, acabou encarcerado num convento. Tornou-se poeta, autor das mais belas poesias místicas já escritas.

Entre os ensinamentos, a certeza de que não se deve levar peso desnecessário na vida. Padre Roger fez analogia com a história de um jovem chamado Tiago, a quem acompanhou na prisão. Tiago, que se converteu na prisão, pegou uma pena de 21 anos pelo crime que cometeu, mas, ao saber da sentença, ele não pareceu triste: "Essas grades não me aprisionam mais. Mesmo aqui, me sinto livre. O amor a Deus me libertou. Como São João da Cruz, que foi perseguido e preso por seus próprios irmãos religiosos ao tentar fundar os carmelitas descalços", contou-nos o padre Roger.

Uma mensagem para os jovens do mundo

Ana Dubeux/CB - A irmã Kelly Patrícia na abertura do Congresso Mariano Internacional, em Fátima

Outro padre com sermões inspiradores é Edmilson Lopes da Cunha, membro da Canção Nova e fundador de Jovens Sarados e Servas da Alegria — duas comunidades católicas voltadas para evangelização de jovens. O padre falou sobre a necessidade de a Igreja manter sempre atento o olhar para a juventude.

Ele comentou sobre o trabalho dos grupos que lidera e ganham cada dia mais adesão em várias cidades do Brasil. Também mencionou o Grupo Hakuna, movimento de jovens católicos da Espanha, que se reúnem para cantorias e adorações, com presença forte nas universidades.

“Vivemos preocupados, com mentes que nunca param. Preocupados com o amanhã, com os filhos, com o trabalho, com tudo. A mente não para. E, assim, as pessoas têm adoecido. Da mente e do corpo. São as doenças modernas, como ansiedade, depressão e pânico. Ou gastrite e outras, por exemplo”, alertou Padre Edmilson. Para ele, os jovens são os que estão mais adoecidos.

Por onde andamos 

Ana Dubeux/CB - Maria Salomé Ventura reza pela paz diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima

O roteiro de peregrinação foi realizado entre os dias 9 e 22 de outubro de 2024. O primeiro destino para alguns peregrinos foi Barcelona, na Espanha, de onde o grupo seguiu para Lourdes, na França, para participar do 1º Congresso Internacional de Cura e Libertação, no Santuário de Lourdes (Chapelle de Notre Dame), nos dias 12 e 13 de outubro. O congresso contou com a presença de importantes líderes religiosos como padre Roger, frei Josué, padre Edmilson, além da participação do Instituto Hesed. A irmã Kelly Patrícia cantou alguns dos sucessos do grupo: Regaço acolhedor, Passarinho, Prisioneiro do Amor e Via Sacra.

O roteiro também incluiu a cidade de Zaragoza, na Espanha, com visita ao Santuário de Nossa Senhora do Pilar, um dos marcos importantes da devoção mariana na região. Na sequência, o grupo se dirigiu a Madri, onde fez um tour panorâmico pela cidade, conhecendo a Rua Gran Via e as praças de Cibeles e Porta do Sol. Houve também uma parada na cidade de Toledo, conhecida como a cidade das três culturas —muçulmana, cristã e judaica. Os visitantes conheceram o centro histórico e a mais bonita catedral espanhola.

Os dias finais foram programados para Fátima, em Portugal, onde os fiéis participaram de dois dias do 2º Congresso Mariano Internacional, e, depois, visitaram locais sagrados, onde se deram as famosas aparições de Nossa Senhora aos três pastorinhos, que aconteceram em 1917. 

Com o tema Jamais será desamparado aquele que recorre a vós, o Congresso Mariano Internacional, no Santuário de Fátima (Salão do Bom Pastor), contou com a participação de Gilberto Barbosa e Maria Salomé, fundador e cofundadora da Obra de Maria, além de palestras de Márcio Mendes, Kátia Roldi, frei Josué e padre Edmilson, missas, consagração e assinatura do termo de consagração e uma noite de cura interior, libertação, intercessão e súplicas à Virgem Maria. Durante o congresso, Maria Salomé pediu a paz mundial diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima.

No ano passado, Fátima também foi sede do Congresso Internacional Mariano, e contou com conferências e momentos de adoração, além da apresentação da irmã Kelly Patrícia e do padre Fábio de Melo. Outros religiosos, como Reginaldo Mazotti, frei Gilson do Monte e as irmãs do grupo Hesset, também estarão presentes. 

Ana Dubeux/CB -
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Humor, gratidão e cura no roteiro da fé

Ana Dubeux/CB - Delma Regina e Luiz Mário celebraram 30 anos de união e uma graça alcançada

Delma Regina Della Riva, fisioterapeuta, e Luiz Mário de Barros, contador, peregrinavam para agradecer. Além de celebrar os 30 anos de casados, comemoravam porque o filho mais velho, depois de um longo distanciamento, agora voltou a acompanhá-los nos trabalhos sociais da Igreja. "Foi uma bênção para toda a família."

No grupo, há quem busque alívio para as dores da alma, mas também para as moléstias que atingem o corpo. A professora aposentada Rosmari Cavalli Piana, natural de Cascavel, no Paraná, teve câncer em um dos pulmões, ficou curada, mas há nove meses a doença voltou. "Eu e meu marido já queríamos fazer uma viagem como essa, de peregrinação, embora eu não soubesse da força de cura de Nossa Senhora de Lourdes. Foi quando surgiu a oportunidade de vir", disse.

Ana Dubeux/CB - Rosmari Cavalli tem esperança de ser curada de um câncer

A esperança de sair curada de Lourdes é real, mas quem busca alívio na fé conhece também os caminhos de Deus. Só de estar ali, Rosmari já se sentia fortalecida para enfrentar o tratamento. Emocionou-se na gruta de Lourdes, mas também na Igreja de Pilar, em Zaragoza, e na Catedral de Madri, todos lugares sacros, onde agradece e pede forças para seguir sua jornada em direção à cura.

Denise Alves, 59 anos, de São Paulo, também deu um testemunho impactante, focado no agradecimento. Ela descobriu o caminho de volta à Igreja depois de muitos anos afastada da fé. Pessoalmente, falou sobre os milagres que ocorreram em sua vida, inclusive a cura de uma doença, sempre ressaltando a necessidade de gratidão. Ali, ela pedia por um sobrinho.

Pedidos e agradecimentos

Todos têm seus motivos para estar numa peregrinação religiosa. Mas a viagem, o caminho, acaba por transformar as pessoas, independentemente de seus objetivos. Helenita Souza, 62 anos, é uma professora cearense, trabalha no Centro Cultural Dom Aloísio Lorscheider, que atende a cerca 300 pessoas em Tianguá, município na Serra da Ibiapaba. Seu ofício de ensinar ocorre num antigo convento. Ali, ocorrem aulas de violão, artes cênicas e plásticas, artesanato, bordado, pintura, costura.

"Quando fiz 60 anos, senti o desejo e tive mais coragem e maturidade para viver algumas experiências na minha vida. Esta é uma delas", disse. Ela deixou o marido no Ceará e fez a sua primeira viagem à Europa acompanhada da filha mais velha, Daliane.

Já tinha visto o filme A Canção de Bernadette (veja boxe). "Quando eu assisti, pensei: 'um dia eu irei em Lourdes'. E aquele desejo ficou no coração. Fui juntando as moedinhas de professora", brinca.

Na fronteira da Espanha com a França, Helenita faz pose ao lado da colega de peregrinação num mercadinho que vendia vinhos, Magna Tereza Vitória de Freitas, 47 anos, nutricionista. Ela veio pagar uma promessa à Nossa Senhora de Fátima. Cantora não profissional, tinha uma banda de metal melódico, mas hoje canta na Igreja.

Ana Dubeux/CB - Helenita e Magna são das mais animadas: pose num mercadinho que vendia vinho

Magna é uma das mais comunicativas do grupo. Nasceu na Paraíba, viveu lá boa parte da juventude, mas se mudou para Manaus há mais de 15 anos. "Tentei tocar rock na igreja, mas não deixaram. Então, comecei a cantar mais e mais as músicas tradicionais. Hoje, canto o que me pedem", diverte-se. Consagrada à Nossa Senhora, ela se lembra do dia em que foi "vestida de roqueira" para a igreja. "Foi o dia que recebi mais bênçãos. Deus acolhe tudo."

O humor também vai de mãos dadas com a fé. Embora a religião tenha os seus momentos litúrgicos e solenes, não faltaram as risadas. Flávia Chagas, 37 anos, era a mais jovem do grupo do riso, da música e da oração. E sua alegria podia contagiar até mesmo os religiosos que nunca se furtaram ao bom humor no decorrer do percurso.

Fotos: Ana Dubeux/CB/D. A. Press - Denise descobriu o caminho de volta à igreja depois de anos afastada

A Canção de Bernadette

O livro A canção de Bernadette, de Franz Werfel, narra a vida de Bernadette Soubirous, uma menina de 14 anos, a partir de suas primeiras visões milagrosas. Era 11 de fevereiro de 1858 quando, junto com a irmã e uma colega de turma, Bernadette Soubirous foi à gruta de Massabielle, em Lourdes, na França, apanhar lenha para aquecer o cômodo onde a família morava.

Doente e sem estudo, ela teve a visão de uma belíssima “Dama”. As aparições de Nossa Senhora para Bernadette, depois declarada Santa, e atraíram todo tipo de reação, incluindo a incredulidade e perseguições. Mas a população começou a seguir Bernadette rumo à gruta em busca de curas milagrosas, que foram reconhecidas mais tarde.

Franz Werfel, o autor do livro, era austríaco, tinha origem judaica e, vendo-se ameaçado pela perseguição nazista, refugiou-se, junto com sua esposa, em Lourdes, na França. Werfel prometeu que divulgaria a história de Bernadette para o mundo. Em cinco semanas, conseguiu fugir para os EUA, onde, em 1941, cumpriu a promessa e publicou o livro.

Bernadette morreu por volta dos 35 anos. O livro virou filme, dirigido por Henry King, e rendeu um Oscar para Jennifer Jones em seu primeiro papel no cinema (ela havia feito antes apenas papéis pequenos usando seu nome real, Phylis Isley). Ganhou ainda os Oscars de Cenografia e Fotografia em Preto e Branco e foi indicado a Melhor Filme, Diretor, Roteiro, Montagem e Som.

*A jornalista viajou a convite da Comunidade Obra de Maria e da Canção Nova

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