Comportamento

Além do racismo: um olhar atento para a saúde mental da população negra

Falar sobre saúde mental parece figurinha repetida. Depois da pandemia de covid-19, é um tema que ficou em alta. Entretanto, para algumas pessoas, ainda continua sendo um universo distante. Para a população negra, cuidar de si é um desafio e tanto

Saúde mental é uma necessidade básica. Em tempos de tecnologia e depois de viver uma crise sanitária global, esse é um tema que se faz ainda mais presente na vida de muitas pessoas. No entanto, há mais motivos para buscar auxílio, acolhimento e apoio. Entre eles, talvez meio escondido para aqueles que não se importam, o racismo e todos os obstáculos enfrentados pela população negra. É fato que todos esses preconceitos trazem prejuízos psicológicos. 

Na visão da psicóloga Ingrid Miranda, o racismo estrutural está relacionado a práticas sociais históricas que, de forma velada — ou nem tanto assim —, dificulta que pessoas negras alcancem posições de poder, emancipem-se intelectual e socialmente, ou obtenham ascensão em diversas áreas de suas vidas. "Quando falamos de racismo estrutural, estamos nos referindo a crenças coletivas que são naturalizadas. Essa naturalização reforça a perpetuação de discursos, comportamentos e conceitos que contribuem para a exclusão de pessoas negras em cargos, ambientes e posições de prestígio", afirma.

Dessa forma, o racismo estrutural não se limita, somente, ao papel social, mas também à saúde mental do homem e da mulher negra, já que as diferentes áreas da vida de uma pessoa se correlacionam, sendo impossível dissociá-las. De acordo com a especialista, a saúde mental de qualquer pessoa é influenciada por fatores sociais, mas pessoas negras estão em situação de maior vulnerabilidade por enfrentarem, diariamente, violências explícitas e veladas. 

Em um contexto terapêutico, segundo Ingrid, é comum encontrar crianças negras que apresentam, desde cedo, sintomas decorrentes do racismo estrutural, sendo necessário trabalhar questões, como autoestima e aceitação dos próprios traços e fisionomia, já que muitas desejam ter uma aparência diferente em consequência do reforço social do padrão europeu de beleza. "É doloroso, mesmo para uma psicóloga, ouvir uma criança dizer que não gosta de si mesma. Essas consequências não se restringem a uma fase específica do desenvolvimento, mas atravessam infância, adolescência, vida adulta e velhice."

Algumas das principais formas pelas quais o racismo estrutural afeta a saúde mental incluem a dificuldade em construir uma autoestima positiva, gerando sentimentos depreciativos em relação a si mesmo, a internalização de crenças de inferioridade e a contribuição para o desenvolvimento de quadros de ansiedade, com a necessidade de um estado constante de hipervigilância. Além disso, há a dificuldade em sentir-se seguro em diversos contextos, além de sentimentos de desvalorização das próprias conquistas. 

"A gente precisa ser ouvido"

Traumas acumulados e a necessidade de falar sobre emoções. Evandro Fióti, 34 anos, vivenciou, pela primeira vez, uma espécie de esgotamento mental há quase uma década. Na época, o sucesso iminente e a posição de liderança no Laboratório Fantasma, gravadora e hub de entretenimento no qual é CEO e cofundador, fez com que ele experimentasse um cansaço diferente de tudo o que já havia visto.

"Estava exausto e já convivia com essa sensação de exaustão há algum tempo. Por ser empreendedor negro, no Brasil, acabei passando por diversas fases, me fez ter crises de diversas proporções, essa demanda fez com que isso me levasse a um desgaste. Gostaria de propor que as pessoas não visitassem esse lugar. Depois, recebi a recomendação para fazer terapia. Não tive qualquer tipo de rejeição, foi um processo de olhar para a minha biografia de uma forma revolucionária, em uma perspectiva totalmente diferente", relembra.

A partir das sessões, Evandro conseguiu olhar, de maneira minuciosa, para as violências raciais que havia sofrido. Voltou para esses lugares de incompreensão e ficou face a face com os sofrimentos que enfrentou até ali. Percebeu que todas as problemáticas relacionadas à autoestima, ao amor-próprio, ao autoconhecimento e à autovalorização estavam escondidas dentro de um espectro: o preconceito. 

"Como homem e menino negro, a gente foi ensinado a passar por cima disso, como se não tivéssemos direito a uma saúde mental digna", destaca. Evandro continuou o tratamento e se aprofundou nas questões de violência racial que viveu desde muito novo. Depois de um período longe da terapia, decidiu, em 2021, voltar às sessões. Porém, desta vez, o acompanhamento psicológico seria com uma profissional negra. Assim, o empresário acreditava que seria mais fácil expor seus sentimentos e traumas. 

Foi um processo um tanto quanto doloroso e de muita reconstrução. Tentar ressignificar e se aprofundar nas violências raciais não era tarefa fácil, muito pelo contrário, é um desafio que persiste até hoje. Hoje, Evandro enxerga a saúde mental como uma ponte de autoconhecimento. Um lugar que poucas pessoas, especialmente a população negra, ainda não conseguiu acessar.

Diante de tamanha sensibilidade e contato consigo mesmo, Evandro decidiu viajar pelo país e partilhar nas redes sociais a caminhada que trava com a terapia e os dilemas racializados que vivenciou. Dentro desse contexto, tornou-se uma referência para aqueles que o acompanham, sobretudo os homens negros. "A gente, enquanto homem, precisa enxergar a nossa vulnerabilidade e se colocar nessa luta contra a discriminação da mulher negra. Mas, ao mesmo tempo, é importante que a gente seja ouvido."

Gabriela Araújo - Evandro é irmão do cantor e rapper Emicida

Apoio e acolhimento

Para aproximar a população negra de um tratamento de saúde mental especializado, várias ações e medidas precisam ser implementadas. De acordo com a doutora em psicologia Leninha Wagner, é necessário fortalecer as políticas públicas de saúde mental, garantindo que serviços psicológicos e psiquiátricos sejam amplamente acessíveis e gratuitos em áreas de maior vulnerabilidade social. A formação de profissionais de saúde mental também deve incluir uma capacitação específica para lidar com o impacto do racismo na saúde mental, garantindo que esses profissionais compreendam as realidades vividas pela população negra. 

"Além disso, a representatividade nos quadros profissionais é crucial, uma vez que a presença de psicólogos e psiquiatras negros pode facilitar a identificação e o acolhimento dos pacientes. Campanhas de conscientização sobre a importância da saúde mental, focadas em desconstruir estigmas e em promover o autocuidado, também são essenciais para educar e incentivar essa população a procurar ajuda", ressalta.

A profissional recomenda que a população negra busque ajuda e se reconheça como alguém que necessita de apoio e acolhimento. "É fundamental trabalhar na desconstrução do estigma associado à saúde mental. Muitas vezes, a busca por ajuda é vista como fraqueza, especialmente em comunidades que historicamente precisaram ser resilientes para sobreviver", completa Leninha. A educação sobre saúde mental precisa ser reforçada em todos os níveis, mostrando que cuidar da mente é tão importante quanto cuidar do corpo. 

Campanhas de conscientização que utilizem lideranças comunitárias, religiosas e influenciadores negros podem ter um grande impacto na forma como a terapia é percebida. Na avaliação da psicóloga, é fundamental criar espaços seguros e culturalmente sensíveis, em que as pessoas negras se sintam compreendidas e acolhidas. O reforço da autoestima e da identidade, por meio da valorização da história e da cultura negra, também é um passo importante para que essa população se sinta empoderada a cuidar de sua saúde mental.

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