Hirayama, um homem solitário de meia-idade, desperta pela manhã com o som da vizinha varrendo a calçada. Ele recolhe o futon e a coberta do tatame, escova os dentes, faz a barba, rega as plantas e segue para mais um dia como limpador de banheiros públicos em Tóquio. Para alguns, sua ocupação pode ser vista como desgastante e até inferior. Mas o funcionário parece satisfeito.
Entre uma limpeza e outra, ele deixa escapar um sorriso, especialmente quando observa o jogo de luz e sombra produzido pelo balanço das árvores ao vento. Traduzido pelo termo japonês komorebi, a coreografia encenada pelas folhas sob o sol é única, já que não se repete exatamente da mesma maneira.
No próprio exercício de limpar, Hirayama está atento e presente, diferentemente de seu colega, mais jovem, que rola o feed das redes sociais com uma das mãos enquanto usa a outra para esfregar a privada. Um dos segredos da felicidade que dele emana no trabalho parece ser justamente esse: sua presença no aqui e agora.
Por meio do seu protagonista, o filme Dias Perfeitos (2023), de Wim Wenders, nos convida a revisitar a nossa rotina laboral, como também nossa postura e escolhas frente a ela. “É o mais próximo que já cheguei de fazer uma declaração sobre a paz”, resumiu o diretor alemão, em entrevista à Slant Magazine.
Um preço nada razoável
O ideal é que possamos dar o nosso melhor no campo profissional sem negligenciar outras áreas da vida, como família, saúde, lazer e práticas altruístas, orienta a filósofa Lúcia Helena Galvão, palestrante e voluntária na Organização Internacional Nova Acrópole.
“Concentrar de forma excessiva as nossas energias em algum desses setores vai gerar desequilíbrio, que é sinônimo de doença, quer no plano físico ou psíquico”, diz. Mesmo assim, somos tentados a nos exceder. “Aceitamos pressões abusivas por conta de querermos destaque, promoção, reconhecimento, e pagamos por essas coisas um preço nada razoável”, ela alerta.
Resgatando o bem-estar no trabalho
Uma pesquisa feita com 20 mil profissionais mostrou que o nível de bem-estar dos brasileiros no trabalho está abaixo do considerado mínimo. O Brasil ocupa o segundo lugar em número de casos diagnosticados de burnout, doença ocupacional reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2022. Além disso, o país é líder mundial em prevalência de transtornos de ansiedade e campeão em depressão na América Latina.
Diante desse cenário desastroso, será possível resgatar o bem-estar em nossos ofícios e o prazer em exercê-los? Podemos, como Wenders, fincar uma bandeira branca e fazer frente a esses tempos em que nos confrontamos com a ditadura de prazos e as cobranças por rendimento que nos exigem para além das nossas forças? A professora Lúcia Helena ilumina a questão ao conectá-la com a busca por propósito e autodesenvolvimento: “o gosto de fazer o que fazemos é um desdobramento do gosto por sermos o que somos e o que estamos trabalhando para chegar a ser”.
No entender da filósofa, a saída é encontrarmos a motivação correta. “Isso cria um espírito constante de aperfeiçoamento em tudo o que fazemos. Assim não somos apenas motivados por uma corrida competitiva em busca de maior destaque, o que acaba se tornando esgotante e desmotivante, como se vivêssemos numa guerra permanente por uma causa não muito justa ou valiosa.”
Nosso papel na revolução
Nosso histórico de autoritarismo, herança colonial e escravocrata estabelece um modelo de liderança agressivo e vertical, aponta o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, autor de A Exaustão no Topo da Montanha: Uma jornada de reconexão com outros ritmos da vida e com o que é essencial (Paidós), entre outros títulos. Ao assumir cargos altos, a tendência é que os profissionais reproduzam esse padrão, causando sofrimento a eles mesmos e aos outros. Resultado: o prazer se torna cada vez mais distante.
Precisamos fazer o esforço individual de nos reconhecer como vítimas disso e entender como a vida poderia ter sido melhor com educação e liderança mais amorosas. A partir daí, é preciso acionar nosso protagonismo para incentivar uma revolução na cultura das organizações.
Desenvolver um ambiente de trabalho colaborativo, generoso e onde o poder tenha uma distribuição mais equânime são algumas das recomendações dos especialistas. Esse espaço em transformação também precisa reconhecer a importância da diversidade e da felicidade para a inovação e o lucro.
“Temos, em 2024, uma discussão sobre se a Inteligência Artificial vai roubar empregos, mas não podemos discutir trabalho remoto e semana de quatro dias. Essa conta não fecha e os recordes de burnout e depressão são prova disso”, diz Maíra Blasi, empreendedora e especialista em futuro do trabalho. “Essas conversas difíceis precisam acontecer entre governantes, empresas e sociedade civil organizada para que mais pessoas possam descansar e gostar daquilo que elas fazem.”
“O adoecimento não está chegando só ao chão da fábrica, mas a todas as esferas de uma empresa”, lembra Alexandre, que orienta: organize-se com as pessoas do seu setor, levante pontos para um trabalho mais humano e os leve à chefia, especialmente às mais sensíveis e que já tenham tido episódios que afetaram sua saúde mental.
Mudanças no mercado
São vários os sinais de resistência ao sofrimento no trabalho. A recusa das novas gerações a postos de chefia é um deles. “Isso obrigará, a médio prazo, uma revisão do que se exige de um trabalhador nesses cargos”, aposta Lúcia Helena Galvão. Outro caso é o quiet quitting, ou demissão silenciosa, quando as pessoas fazem estritamente as funções para as quais foram contratadas, sem maiores ambições de crescimento.
“Ver o trabalho como uma forma de sustento, de uma maneira bem pragmática, também é um jeito de ser generoso e benevolente com a gente”, observa Maíra Blasi. Para ela, “o sentido da nossa vida pode estar em outros lugares.”
Na equação por dignidade laboral, o esforço individual é importante, mas não basta. Em um contexto profundamente desigual, o prazer no ambiente profissional, no Brasil, muitas vezes tem raça, classe, gênero, origem geográfica e orientação sexual definidos. As organizações privadas e estruturas públicas de poder têm um papel crucial para mudar essa história, especialmente no que se refere a alterações nas estruturas sociais.
Investir no bem-estar de quem trabalha
As empresas podem, por exemplo, adotar metas mais sustentáveis, reduzir a jornada de trabalho, reconhecer o trabalho de cuidado e ampliar a licença à paternidade, orientam os especialistas. “É essencial que as companhias invistam em programas de qualidade de vida, ofereçam suporte psicológico e promovam um ambiente de trabalho positivo”, afirma a médica Simone Nascimento Souza, especialista em saúde mental e bem-estar nas organizações.
Investir no bem-estar de quem trabalha, por sinal, está diretamente relacionado a resultados financeiros positivos, apontam estudos. Funcionários felizes são até 12% mais produtivos, descobriu a Universidade de Warwick, no Reino Unido. Eles também sofrem 50% menos acidentes de trabalho e são mais inovadores e leais, aumentando o lucro das empresas. Já a falta de engajamento de equipes custa 9% do crescimento econômico mundial.
Em busca de satisfação
Para se reconectar com o prazer no trabalho, Alexandre Coimbra nos convida a identificar as atividades que executamos com mais fluidez. Aquelas que fazemos sem ver o tempo passar, sabe? É o chamado estado de flow. “Assim as pessoas não apenas realizam suas tarefas de maneira mais eficiente, mas também encontram maior satisfação e significado no que estão fazendo. A atividade em si se torna intrinsecamente prazerosa, a despeito do resultado”, esclarece Simone.
Podemos direcionar nossa carreira a essas tarefas ou, pelo menos, aumentar a frequência com que as executamos. Aliás, mudanças dentro de uma mesma área, bem como buscar novas habilidades e conhecimentos, também são formas de renovar o interesse pelo trabalho, acrescenta Márcia Miyamoto, coach e professora na The School of Life.
Providências simples também são valiosas, como se lembrar de respirar fundo e olhar para o céu. Isso pode desanuviar o peito em meio a atividades áridas e chamar a felicidade mais para perto. Técnicas de respiração, meditação e pausas conscientes ao longo do dia são recomendadas para gerenciar o estresse e lidar com a pressão.
“Para ter gosto pelo trabalho, faz-se necessário um ambiente com relações interpessoais saudáveis e possibilidades de o sujeito que trabalha poder colocar a sua marca, a sua identidade no fazer cotidiano”, agrega Lêda Gonçalves de Freitas, doutora em psicologia organizacional e do trabalho.
Além de exercer a criatividade, ser reconhecido e ter liberdade para cumprir tarefas são fontes de satisfação. “Quando essas dimensões de prazer se apresentam, o enfrentamento das dificuldades acontece de forma mais tranquila”, completa Lêda.
Descansar é preciso
Na cultura judaico cristã, o sacrifício é a estrada indicada para a evolução enquanto o prazer se veste de pecado. Coautora da Declaração dos Direitos Descansistas, Maíra Blasi ressalta que, na sociedade brasileira, a ideia de “sacro-ofício” é intensificada. Palco de uma lei contra a vadiagem, em 1941, o país tende a ver com maus olhos descanso e diversão.
“Mas só existe trabalho se existe descanso. O descanso está na legislação, é um direito básico universal”, lembra, apoiada em diversas pesquisas que relacionam a pausa ao bem-estar, à felicidade e ao aumento da produtividade.
Apesar das evidências científicas e das legislações, continua sendo necessário lutar pelo direito de descansar em meio à pregação incessante por sermos produtivos. É preciso reservar espaço na agenda para isso, saber delegar tarefas, além de estabelecer e comunicar limites, dizendo não quando necessário e desistindo da ideia de agradar e atender a todos.
Também faz parte celebrar as pequenas conquistas e milagres cotidianos, valorizando nossa rede de apoio. “A gente também descansa um no outro. Se eu não posso confiar em ninguém, estou sempre tensa e insegura”, aponta Maíra. “Com uma rede, consigo relaxar na confiança de que, se me cansar, vou ter alguém do meu lado para me apoiar.”
Trabalhe como quem brinca
Outro ponto importante, mas subestimado, é o brincar. Em sua pesquisa “Trabalhe como quem festeja”, Maíra investiga o que podemos aprender com quem vive de festejar, como os trabalhadores do Carnaval, das festas de São João e de Parintins.
“O adulto para de brincar como se a vida virasse uma coisa muito séria”, observa. Resgatar a brincadeira garante mais alegria no trabalho, proporcionando saúde e força para lutar por dias melhores. “Pessoas cansadas e tristes não têm energia para fazer a revolução de que a gente precisa.”
Ao encontrar um papel com um “jogo da velha” deixado atrás de um vaso sanitário em um dos banheiros de que cuida, Hirayama aceita o convite para a brincadeira. Ele rabisca a sua jogada e volta a esconder o papel, à espera do lance do outro jogador, de quem recebe um “muito obrigado” escrito quando a partida chega ao fim.
A beleza coexiste com os conflitos e dilemas
Felizmente, assim como a diversão, a beleza coexiste com os conflitos e dilemas da vida de todos nós. Inclusive, ela alimenta Hirayama no mais banal do seu cotidiano. Colecionador de fitas cassete, ele se inspira com música norte-americana dos anos 60 e 70 a caminho do serviço. Também gosta de ler antes de dormir. Aos finais de semana, pedala e relaxa em uma casa de banho.
“A beleza é o tipo de suspiro que a nossa alma precisa cada vez mais ter nesse mundo acelerado e inclinado ao colapso”, defende Alexandre. “Tudo que te for belo, que te fizer suspirar, fizer a sua alma cantar, fizer você sorrir, ainda que por minutos, é uma experiência de beleza”, ele atesta.
Ufa! Sentiu o peito se alargar? Então, vamos reaprender juntos a sonhar e a criar outros modos de viver e de trabalhar, como o protagonista de Dias Perfeitos em sua silenciosa revolução diária.
Por Martina Medina – revista Vida Simples
Jornalista. De volta ao presencial, se emociona vendo a poesia saltar das conversas com os colegas, dos textos e dos dias.