Por Eliana Lucena, jornalista
Quando no início de 1972 as máquinas das empreiteiras chegaram à margem direita do Rio Xingu, uma cerimônia organizada pelo governo militar marcou aquele momento com um churrasco com gosto de querosene. Era a conquista de mais uma etapa da construção da rodovia Brasília-Manaus, que na verdade nunca foi concluída pela inviabilidade técnica do traçado feito em prancheta pelos técnicos de Brasília. Nós, então jornalistas no começo de carreira, acompanhamos de perto a euforia daquele grupo e também o protesto dos índígenas Kaiapós.
Ali perto, meio encoberto pela mata, estava o jovem líder Raoni, acompanhado de um grupo de guerreiros. Todos pintados de preto, cor de luta. Era um protesto contra a estrada que naquele momento invadiu o coração da Terra Indígena do Xingu, criada pelos irmãos Villas Boas.
Naquele dia, entendi a dimensão da invasão que estava por vir, em nome do tal progresso que tinha como slogan do governo: "Integrar para não entregar", como se os inimigos fossem externos, e não os do próprio país. Cobiça e destruição. De lá para cá, foram frequentes as viagens ao parque. Tempos depois, os mesmos Kaiapós afundaram a balsa que fazia a ligação das duas margens, próximo do povoado que surgiu: São José do Bang Bang.
Muita tensão, homens armados e indígenas indignados. Em seguida, os mesmos Kaiapós invadiram e mataram peões de uma fazenda recém-implantada na margem esquerda do rio. Pude acompanhar de perto, com o sertanista Sydney Possuelo. Depois disso, a parte norte do Xingu, desmembrada da área protegida foi reincorporada ao Parque.
O Rio Xingu é mágico, com as suas margens de mata densa, água de um azul incrível e marcado na seca por bancos de areia onde os tracajás desovam. Ele alimenta as etnias que ali vivem e faz a ligação entre o baixo e alto Xingu, onde o rio segue até a foz. Não sei exatamente onde foi feito o vídeo chocante do mesmo rio, que invadiu as redes sociais, mostrando quilômetros de vegetação engolida pelas chamas.
Um choque profundo. Uma tristeza enorme. O país em chamas. Incêndios em sua maioria criminosos, causados pela ganância. Expandir a monocultura, destruir áreas protegidas (como o Parque Nacional de Brasília), atacar áreas indígenas que já perderam tanto. E o governo? Emparedado pelo que há de mais atrasado no setor do agronegócio, além de bancadas da Bíblia e das armas.
A sociedade, em geral aparentemente apática diante de décadas de alerta sobre esse quadro que afeta profundamente as mudanças climáticas, parece acordar. É urgente punir os responsáveis por tamanha tragédia. E não somente meia dúzia de paus-mandados flagrados em ação.
Não podemos correr o risco de novamente esquecer o sufoco com a chegada do período chuvoso no final do mês. Com a chuva, ocorrerão novas catástrofes, como a que acompanhamos este ano no Rio Grande do Sul.