Cidade Nossa

Crônica Cidade Nossa: Tesouros banais do cotidiano

Em uma reflexão sobre livros, Dante Accioly ressalta na crônica deste domingo seus primeiros contatos com a literatura

cronica pestana revista 2209 -  (crédito: Caio Gomez)
cronica pestana revista 2209 - (crédito: Caio Gomez)

Por Dante Accioly, jornalista

Um livro na estante não traz apenas a história que o escritor quis contar. Ele também guarda entre suas páginas um pouco da vida de quem lê. Quando eu era criança, gostava de estudar português pela gramática que meu pai havia usado no seminário capuchinho. As folhas ásperas e amareladas do Napoleão Mendes de Almeida traziam aqui e ali uma anotação do meu pai-menino. Naquelas letras escritas a lápis, eu quase conseguia ler a tristeza do garoto afastado da família para viver na clausura.

Talvez por conta da velha gramática, sempre gostei de livros usados. E não conto as vezes em que trouxe para casa pequenos vestígios da vida alheia escondidos entre as páginas de um livro retirado do sebo ou da biblioteca. Uma conta de luz, um extrato de banco, um calendário de bolso, um papel de Sonho de Valsa.

Nenhum desses tesouros banais do cotidiano se compara ao que encontrei dentro de Os eleitos, de Tom Wolfe. Comprei esse livro em dezembro de 2002 em um sebo da Asa Norte. Ele conta a história dos pilotos de caça que se tornariam os primeiros astronautas norte-americanos.

Esquecido nas últimas folhas, havia um cartão postal. Enviado da Índia em 1988 para um apartamento na 115 Norte, o cartão trazia na frente a foto de uma ala interna do Taj Mahal: os túmulos luxuosos da princesa Mumtaz Mahal e do imperador Shah Jahan.

O contraste entre o livro e o postal parecia inconciliável. Na capa de Os eleitos, um astronauta metido em um moderno traje espacial flutuava na escuridão austera do espaço. No cartão, um indiano vestido com roupas modestas passeava pelo mausoléu de mármore ricamente decorado com pedrarias.

Mas o melhor estava no verso. Escrita em letra miúda e apressada, a mensagem do remetente não se deixava revelar por completo. Embora eu conseguisse entender quase todo o texto, duas palavrinhas teimavam em permanecer incógnitas.

Pensei em bater à porta do destinatário. Eu tinha o nome completo, a quadra, o bloco e o apartamento. Quem sabe ele não podia me ajudar a entender aquela mensagem por inteiro? "Mas isso seria fácil demais", pensei. E eu queria decifrar sozinho o que estava escrito ali. Era um jogo, um desafio. Virou uma obsessão.

O enigma do postal me acompanhou por mais de 20 anos. Nas noites de insônia, eu ia até a estante do escritório e sacava Os eleitos da prateleira para uma nova tentativa. Que duas palavras são essas? "Umbida" e "puparo"? "Eubida" e "fufaro"? "Nubida" e "pulsaro"? Nada fazia sentido, e o tempo passou sem que o mistério fosse desfeito.

No ano passado, ganhei um kindle de presente e acabei me afastando de sebos e bibliotecas. Fui ler meus livros digitais — sempre novinhos em folha, eletronicamente pasteurizados e livres de qualquer resquício de um leitor anterior. Nunca encontrei uma carta perdida entre as páginas de um e-book.

Eis que ontem, não sei por que cargas d'água, lembrei de Os eleitos e quis reler o velho cartão. Sem o badalar de sinos ou o toque de trombetas, a mensagem escondida por mais de duas décadas se mostrou por completo — explícita e transparente como se durante todo esse tempo nenhuma outra interpretação fosse possível:

"Agradeço ao meu grandiosíssimo e pacificador-mor a contribuição recebida no sentido do melhor preparo para o novo encontro com o Guru. Uma lembrança de você na Índia." Enfiei o cartão no bolso e caminhei apressado até a 115 Norte. Era hora de devolver o velho postal ao verdadeiro dono.

danteaccioly@gmail.com

 

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postado em 22/09/2024 07:00
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