Especial para o Correio — Dante Accioly
Se tem uma coisa que gosto de fazer no domingo é praticar esportes. Quem me conhece sabe: antes das oito já estou de pé, prontinho da silva para treinar. Sou adepto de uma modalidade pouco conhecida. Atividade física de baixo impacto, ideal para o homem de meia-idade. Meu esporte favorito é repousar os cotovelos sobre o parapeito da janela e espiar a vizinhança. É fuxicar, em português castiço.
Tenho uma amiga que rema todo dia no Lago Paranoá. Ela diz que o segredo do sucesso é treinar bem cedinho, antes que o sol comece a esquentar a moleira da gente. Comigo também é assim: meus exercícios de fuxicagem nas primeiras horas da manhã geram os melhores resultados, os flagrantes mais inusitados.
Foi o que aconteceu na semana passada. Olha o bafafá! Um grupo de jovens passou a madrugada tocando violão no gramado em frente ao meu bloco. Nada contra. Fiz muito isso, aliás. Mas tenho um vizinho que não gostou da serenata.
— Vou chamar a polícia! — ameaçou.
A juventude nem deu bolas e seguiu na cantoria.
Quando a manhã de domingo despertou sonolenta, eu já estava a postos para o primeiro mexerico do dia. Acomodado no parapeito, avistei de longe o vizinho voltando da padaria com os passos pesados de quem havia passado a noite em claro. Ele fazia o rastro do boi velho. Triste e cansado, trazia um pão amassado embaixo do sovaco.
Não é preciso ser um atleta de alto desempenho nos aparelhos janelares para saber que a atitude mais sensata para o vizinho era ir direto para casa. Para que arrumar confusão e estragar o resto do domingo? Mais tarde, quando voltasse da missa, confessado e comungado, ele poderia se recostar no sofá para um soninho reparador.
Mas não. O velho resolveu desviar a rota. Queria tirar satisfação com os jovens que, àquela altura, já enfiavam a viola no saco e juntavam as sobras da farra para ir embora.
Foi aí que o fuxico começou. O vizinho chegou cheio dos argumentos. Aos berros, reclamou do barulho, defendeu a lei do silêncio. Essa juventude está perdida! Vocês não têm casa? Cadê os pais de vocês? Não deram educação?
Coitado do velho, fiquei com dó. Foi cercado pela euforia faminta dos boêmios e voltou para casa sem a baguete. Depois de quebrarem o jejum com o pão do vizinho, os jovens foram embora agitados como torvelinhos arruaceiros.
Isso foi na semana passada. Hoje é domingo, e, como manda a tradição, acordei cedo para dar aquela conferida curiosa na vizinhança. Não houve cantoria de madrugada, nem bate-boca de manhã. Enquanto eu exercitava meus bíceps erguendo uma boa xícara de café, o único movimento lá fora era o pessoal do tai chi chuan meditando na Praça da Harmonia Universal.
Parecia que o apurado do dia não ia sair disso, quando percebi um vozerio, uma agitação embaixo do pilotis. Ora, ora, ora, se não eram os mesmos jovens do outro dia! Desta vez sóbrios, bem vestidos e com ares de madalenas arrependidas, eles se postaram bem embaixo da janela do meu vizinho.
— Seu Geraldo! Acorda, seu Geraldo!
Vi o perfil do homem aparecer desconfiado atrás das grades do apartamento ao lado.
— Seu Geraldo, essa é para o senhor.
Eles entoaram um pedido de desculpas em forma de canção. Só uma música e nada além. Sem dizer mais nada, deixaram uma cesta de pães na portaria e foram embora como brisas de calmaria. Na janela, o velho sorriu.
Agora me diga se não tenho razão. Um fuxico desses ativa a circulação sanguínea, libera serotonina, aumenta a disposição, eleva a autoestima. Vale mais do que umas boas remadas no Lago Paranoá.
Dante Accioly é jornalista