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Mês do Orgulho: comunidade LGBTQIAPN+ enfrenta mais desafios no acesso à saúde

Além do preconceito, discriminação e direitos negados, população que não se inclui na heteronormatividade e/ou cisgeneridade enfrenta dificuldades no que diz respeito ao acesso à saúde

Bandeiras do orgulho  -  (crédito: Unsplash/Reprodução)
Bandeiras do orgulho - (crédito: Unsplash/Reprodução)

Alguma vez você já foi a uma consulta médica e se sentiu desconfortável em compartilhar com o profissional algum aspecto da sua vida ou informação que seria importante para um atendimento ou tratamento mais eficaz e adequado

É raro encontrar alguém que nunca tenha passado por isso. E se você faz parte da comunidade LGBTQIAPN+, esse é, infelizmente, o padrão de atendimento. Para uma pessoa que não performa a cisgeneridade ou a heteronormatividade, o raro é passar por uma consulta livre de constrangimentos relacionados à sua identidade de gênero ou orientação sexual. 

Aos 23 anos, com acesso ao sistema privado de saúde e fazendo acompanhamento básico com ginecologistas desde o início da adolescência, a assistente social Luhana da Fonseca dos Santos conta que está há seis anos sem encontrar um profissional com o qual se sinta confortável. 

Luhana da Fonseca dos Santos
Luhana da Fonseca dos Santos (foto: Arquivo pessoal)

O que aconteceu há seis anos foi que Luhana se descobriu e se assumiu como uma mulher lésbica, o que não deveria, mas mudou completamente a forma como costuma ser tratada a cada atendimento. Desde então, tem frescas na memória as diversas violências que passou ao longo desses anos. "Nunca encontrei um profissional que tenha me tratado normalmente após saber que me relaciono com mulheres." 

A primeira mudança foi que, depois de algumas experiências ruins, ela não se sentiu mais confortável em se consultar com ginecologistas homens. Mas, mesmo buscando sempre mulheres, ainda não se sente confortável. Ao ser questionada sobre os métodos contraceptivos que usa, Luhana sempre explica que essa não é uma demanda, pois ela não mantém relações sexuais com homens. Em uma ocasião, uma médica questionou se ela tinha certeza que era uma mulher lésbica e que deveria, sim, buscar um método de contracepção. 

Em outro extremo, ao mencionar sua orientação, ouviu de outra profissional: "Então, você veio fazer o que aqui?", como se ela não estivesse, como qualquer pessoa com vida sexual ativa, ou não, sujeita e outras questões de saúde íntima que não envolvem evitar uma gravidez. E, assim, além de enfrentar a discriminação, a assistente social precisa lutar contra a ignorância e a falta de informação da pessoa em quem ela deveria confiar para cuidar de sua saúde. 

"É um desconforto enorme, e aí eu me vejo indo ao médico e escondendo informações que seriam importantes, mas que vão me causar um desgaste enorme. Por outro lado, eu me percebo tendo que ensinar para uma médica que não se busca atendimento somente quando se tem relações sexuais com homens. É cansativo", desabafa. 

Indo além das violências, Luhana conta que sente um enorme desânimo toda vez que precisa buscar novo atendimento. "Parece que eu preciso sempre estar me assumindo, e isso me fere. É como se estivesse revivendo aquele receio de dizer quem sou e sofrer um preconceito. E em um espaço em que você já fica mais inseguro e vulnerável, que é quando precisa de um atendimento de saúde", conta. 

Luhana da Fonseca dos Santos
Luhana percebeu a mudança de tratamento desde que se assumiu lésbica (foto: Arquivo pessoal)

Apesar das piores experiências terem acontecido na ginecologia, o desconforto se estende a outros tipos de atendimento. Toda vez que passa mal e vai a um serviço de emergência, o que acontece com frequência, pois ela tem hipoglicemia, precisa afirmar e insistir que não está grávida e, muitas vezes, só desistem do teste quando revela sua orientação. "Na hora, a expressão da pessoa muda. Ou da bug na cabeça e a pessoa fica meio perdida ou muda o tratamento, e vem o preconceito e o desrespeito". 

Luhana acredita que embora a discriminação seja um dos maiores problemas, a falta de informação e preparo, mesmo de quem não tem preconceitos, interfere muito no atendimento. 

A falta de conhecimento

Atuando diretamente com a comunidade LGBTQIAPN+ e sendo um defensor do atendimento de qualidade, com respeito e dignidade às pessoas a quem esse tipo de cuidado costuma ser negado, o coloproctologista e professor adjunto de cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília Luiz Lobato reforça e confirma a percepção de Luhana.

Segundo Lobato, o primeiro desafio é que as pessoas entendam o que é a comunidade, pois grande parte da população ficou parada na antiga sigla GLS. "Muitas pessoas não têm ideia do que são todas as outras letras, e um número assustador de médicos não compreende os conceitos simples do que são pessoas cis e trans." 

O médico traça um paralelo mencionando que, em 1902, o tratado de proctologia determinava a homosseuxalidade como uma doença orgânica, e que há 20 anos, quando fez faculdade de medicina, em nenhum momento de sua formação foi abordado qualquer aspecto relacionado a pessoas trans e não binárias. "E quantos médicos você acha que existem que continuam sem saber nada sobre essas pessoas e suas demandas de saúde? Se essa geração de médicos não foi educada a saber e compreender o que é uma pessoa trans, como vai tratá-la?", questiona. 

Para Lobato, esse ponto inicial, a informação e a educação dos profissionais de saúde, é crucial para que a comunidade passe a receber atendimento básico com o mínimo de respeito. A partir da informação, o médico passa para a obrigação da profissão de oferecer um atendimento livre de preconceitos e de suas convicções e crenças. 

Uma estratégia que o médico comenta que pode deixar os profissionais de saúde e pacientes mais confortáveis é demonstrar para o paciente que todos os problemas de saúde têm igual importância e devem ser cuidados sem julgamento, principalmente quando se trata do aparelho reprodutor e da vida sexual.“O objetivo não é deixar de ver a pessoa como um indivíduo, é importante ter esse cuidado. O paciente não é só uma coisa ou um órgão, mas se ater à demanda de saúde daquele momento, mostrar que não existe julgamento e que todas as queixas são ouvidas com igual importância e naturalidade pode trazer mais acolhimento ao paciente”, acredita.

"O objetivo não é deixar de ver a pessoa como um indivíduo, é importante ter esse cuidado. O paciente não é só uma coisa ou um órgão, mas se ater à demanda de saúde daquele momento pode ajudar a diminuir esse julgamento e preconceito", acredita. 

Indo além, Lobato menciona que as demandas do aparelho reprodutor são infinitamente mais difíceis e complexas para pessoas trans ou não binárias. "Imagine uma mulher trans com 50 anos, com dificuldade para urinar, na fila do SUS esperando para ser atendida pelo urologista, rodeada de homens cis. Um homem trans na fila de espera do ambulatório de ginecologia. Só esse primeiro passo já é extremamente difícil", considera. 

Especificidades

Outro ponto abordado por Lobato são algumas das demandas específicas enfrentadas pelas pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. Pacientes trans que fazem a hormonização, por exemplo, recebem grandes cargas hormonais, o que pode ter influência no desenvolvimentos de alguns tumores. No caso de pessoas que recebem testosterona, as taxas de colesterol tendem a subir bastante, o que exige um cuidado cardiológico.

Bandeiras do orgulho
Bandeiras do orgulho (foto: Unsplash/Reprodução)

"Nesse ponto, é fundamental destacar que a pessoa não tem essa questão por ser trans, mas com o tratamento com os hormônios. O mesmo pode acontecer com pessoas cis que precisem fazer reposição hormonal por diversos motivos", acrescenta Lobato. 

Pessoas que fizeram cirurgias afirmativas de gênero, como homens trans que removem os seios, não podem deixar de considerar o câncer de mama, por exemplo, pois o tecido mamário não é todo eliminado. O mesmo cuidado precisa continuar no que diz respeito ao útero. No caso de mulheres trans, é necessário cuidado extra com a próstata. 

Para os que praticam sexo anal, independentemente de gênero ou orientação, Lobato acrescenta a importância do rastreio para HPV. “O canal anal tem um tecido muito semelhante ao colo do útero, onde se instala o HPV, um vírus extremamente prevalente e que a pessoa que pratica sexo anal, seja ela XX ou XY, precisa fazer a prevenção da mesma forma que no colo do útero.”

O médico ressalta, sobretudo, a importância do diálogo e da confiança entre médico e paciente, o que só é possível de atingir quando existe acolhimento e abertura por parte do profissional, e que vai deixar o paciente confortável para abrir suas questões mais íntimas que sejam necessárias para o atendimento.

Gestar em um corpo não binário 

 18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena.
18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena. (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

O multiartista, modelo e artesão Akódomen Otxokayone, 20 anos, é uma pessoa não binária transmasculina e está no quarto mês de gestação. De origem indígena, Akódomen soma em sua identidade diversos elementos que o levam a sofrer inúmeros preconceitos. Aos 10 anos, percebeu-se uma pessoa trans e contou para a mãe. Alguns anos depois, descobriu a não binariedade (não se identifica nem com o gênero feminino nem com o masculino) e percebeu que era onde se identificava. 

Muito tratado no feminino, principalmente nos espaços de saúde que precisa ocupar atualmente, durante o pré-natal de seu bebê, Akódomen comenta que precisou se acostumar para se proteger. "Nesses atendimentos, eu não sou uma pessoa gestando, sou uma mulher grávida, e ficar corrigindo o tempo todo, explicando, me incomoda, me desgasta muito, então ignoro. Mas gostaria que fosse diferente." 

Antes mesmo do início das consultas, ele passa por um processo de ansiedade, pois a situação sempre é constrangedora. Indo além, há o medo de corrigir as pessoas e sofrer algum tipo de violência. Um dos grandes medos de Akódomen é o momento do parto. "Se mulheres cis já sofrem tanta violência obstétrica, eu fico muito nervoso de sofrer algo e ainda mais alguma coisa que possa afetar o bebê." 

Uma das coisas que ele mais detesta nas consultas é ser chamado de mãezinha. Ele ainda não definiu como vai querer ser chamado pelo bebê. "Ainda é confuso para mim, não sei se serei mãe, ocupando um papel mais voltado socialmente para a identidade feminina, ou pai. Não vejo tantos exemplos de pessoas não binárias gestando e ainda não sei como vai ser o processo para mim", revela. 

A gestação foi planejada e, quando engravidou, Akódomen estava junto com a pessoa com quem gerou a criança, uma mulher trans. Separados no momento, Akódomen comenta que ela quer fazer parte da vida do filho, mas que ele será o cuidador principal. 

 18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena.
18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena. (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

"Acredito que esse papel principal, lido como maternidade, não tem a ver com ser mulher, homem, pai ou mãe. Mas a pessoa que gera aquela vida dentro do próprio corpo acaba tendo uma ligação mais forte com a criança e ocupa esse papel chamado de mãe", acrescenta. 

O cuidado com cada letra 

Indo além dos desafios comuns à comunidade, o médico ginecologista Edson Santos Ferreira Filho ressalta que mais um dos problemas quando se fala do acesso à saúde é o tratamento de todas as pessoas LGBTQIAPN+ como uma entidade única, esquecendo-se da individualização.

LGBTQIAPN+
LGBTQIAPN+ (foto: Alexander Grey/Unsplash )

"Costumamos falar da comunidade como um todo, já que muitas das dificuldades são comuns a cada uma das identidades e sexualidade inseridas na sigla. No entanto, quando falamos de saúde, é necessário esmiuçar um pouco mais", afirma. 

No caso das mulheres cis lésbicas, muitas deixam de falar sobre sua orientação sexual na consulta ginecológica por receio de julgamento ou de não ter mais oportunidade para atendimento, o que Edson encara como um dois principais desafios para elas, uma vez que, para que essas consultas alcancem seus objetivos, é importante que o médico compreenda a vida sexual da paciente. 

Homens cis gays enfrentam dificuldade semelhante em consultas com profissionais urologistas ou outras especialidades, por vezes também omitindo a orientação sexual, trazendo-a à tona apenas em casos em que isso seja estritamente necessário, e, ainda assim, com grande receio. 

"Especificamente para pessoas trans, a falta de respeito ao nome social é algo grave e que também precisa ser pontuado", comenta Edson. Ele conta também que, muitas vezes, essas pessoas buscam resolução de questões de saúde em ambientes inseguros, expondo-se a maiores riscos. 

No que diz respeito às pessoas assexuais, Edson acrescenta que é comum que a falta de compreensão e a presunção de que são pessoas sem atividade sexual, o que não necessariamente é verdade, e alguns riscos — como o de infecções sexualmente transmissíveis e gravidez — acabem subestimados. 

 "Por fim, as pessoas bissexuais comumente têm sua orientação invalidada, como se estivessem confusos ou indecisos, e isto ainda é repetido por profissionais de saúde, de maneira equivocada. Se o profissional não é capaz sequer de entender qual é sua identidade de gênero e sua orientação sexual, como poderá prover os cuidados necessários daquela pessoa?", questiona. 

E independente da identidade de gênero e da orientação sexual, Edson afirma que é necessário individualizar os rastreamentos e as estratégias de prevenção, levando em consideração o tipo de prática sexual. "Pessoas que praticam sexo oral-anal precisam tomar vacina contra Hepatite A, pessoas com vulva precisam discutir adaptações do preservativo e de cuidados anticoncepcionais, por exemplo". 

  • Luhana percebeu a mudança de tratamento desde que se assumiu lésbica
    Luhana percebeu a mudança de tratamento desde que se assumiu lésbica Foto: Arquivo pessoal
  • Luhana da Fonseca dos Santos
    Luhana da Fonseca dos Santos Foto: Arquivo pessoal
  • Bandeiras do orgulho
    Bandeiras do orgulho Foto: Unsplash/Reprodução
  •  18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena.
    18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena. Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  •  18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena.
    18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena. Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  •  18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena.
    18/06/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Pauta sobre pessoas não binária transmasculina. Akódomen Otxokayone que tem origem indígena. Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
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    LGBTQIAPN+ Foto: Alexander Grey/Unsplash
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postado em 23/06/2024 08:00 / atualizado em 23/06/2024 08:42
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