Por Dante Accioly — Especial para o Correio — Seu Freitas é o dono da banca de revistas da minha quadra. Minhas filhas pequenas são fãs dele. Não tem uma semana que elas passem sem bater o ponto por lá pelo menos duas ou três vezes — seja para escolher uma revistinha de colorir, seja para tomar um "sorvete de unicórnio". A ordem de prioridades delas não é necessariamente essa.
Seu Freitas acorda cedo. Quando levanto para fazer o café e me deparo com a angustiante ausência de pão de queijo no congelador, sou obrigado a fazer uma visita sonolenta ao supermercado 24 horas. A manhã é ainda escura e fria. Faróis e aquecedor ligados, passo de carro em frente à banquinha. Seu Freitas já está por lá, pronto para receber os primeiros clientes.
Eu não diria que ele é um sujeito sisudo ou antipático. Longe disso. Ele sorri e se diverte com o fuzuê das pequenas clientes que levo para movimentar a economia local ao cair da tarde. O homem só não gosta de gastar palavras à toa. É direto, sem rodeios. Não perde tempo com salamaleques. Parece comigo nesse aspecto. Nos damos bem.
Quase todo domingo, encosto por lá na hora do almoço. Invariavelmente, travamos o mesmo diálogo.
— Uma Coca-Cola, por favor.
— Zero ou normal?
— Normal.
— É lata ou garrafa?
— Garrafa.
— Pequena ou grande?
— Grande.
— Dinheiro ou cartão?
— Cartão.
— É crédito ou débito?
— Débito.
— Insere ou aproxima?
— Aproxima.
— Quer sacola?
— Por favor.
Volto para casa feliz, experimentando um sentimento envaidecido de cumplicidade e pertencimento à minha comunidade.
Nesses últimos dois anos, só teve uma vez que seu Freitas fugiu ao roteiro de nossas conversas costumeiras. Espremo a memória o quanto posso, mas não consigo lembrar como a gente se desviou dos assuntos corriqueiros. Não sei se foi depois do "é lata ou garrafa?" ou antes do "é crédito ou débito?". Mas um dia, inesperadamente, seu Freitas me disse do nada, sem ser perguntado:
— Perdi um irmão muito jovem.
— Eu também — respondi.
Peguei meu refrigerante e nunca mais tocamos no assunto.
Meu irmão, o Filipe, morreu aos 28 anos. Foi uma das 43,2 mil vítimas do trânsito em 2011. A partida dele me machucou mais do que as outras.
Quando o Filipe se foi, fiquei triste, arrasado — mas também com raiva. Zangado com meu irmão. Ele era o caçula dos três filhos, e eu só pensava no sofrimento que a morte dele significaria para os meus pais. Como ele pôde ter partido antes de mim, que sou o mais velho? Como explicar aquela separação violenta para minha filha de dois anos? Por que expor nossa família a uma dor tão abissal? Acho que só a morte é capaz de despertar perguntas ao mesmo tempo tão honestas e tão ridículas.
Movido pela raiva, tratei de matar o Filipe de novo e de diversas formas. Apaguei o contato dele no celular. Enviei para a lixeira e-mails, imagens e mensagens que trocamos. Se ele tinha Orkut ou Facebook, deixei de segui-lo. Enterrei no fundo do armário da garagem a boina creme que me coube na partilha. Evitei o quanto pude os textos de "feliz aniversário" cheios de saudade que minha mãe costuma escrever aos novembros. Fiz um esforço descomunal para sepultar qualquer memória do meu irmão tão amado, tão querido. O "Felas", como eu o chamava.
Claro que não consegui. A lembrança volta como um tsunami irrefreável. O sonho com aquela gargalhada contagiante não pede licença para me acordar de madrugada. A foto dele publicada por um amigo em comum viola meu feed no Instagram. Os olhos de Carmy Berzatto na série de TV imitam os do meu irmão.
Mas espera... Eu nem queria escrever sobre isso. Por que seu Freitas foi mudar o rumo da prosa?
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