Assis — Francisco de Assis, Rita de Cássia e Padre Pio de Pieltrecina. Três nomes de santos, com "sobrenomes" de cidades italianas. Tanto os santos quanto os seus berços são abrigos. Lugares de fé, de reflexão, de conhecimento e de emoção, que abraçam fiéis e peregrinos. Segundo a Organização Mundial do Turismo (OMT), 340 milhões de pessoas saem de suas casas todos os anos para viajar a lugares sagrados a fim de vivenciarem experiências espirituais e religiosas únicas.
Mais do que uma indústria de bilhões, o turismo religioso tem outro sentido. "É uma oportunidade tremenda de fé, de fortalecimento, de escutar os relatos das pessoas, de encontro com Deus e com você mesmo, de ressignificar muitas coisas na sua vida, na sua espiritualidade. A gente sai cheia de conhecimento e de vontade de mudar", resume a farmacêutica mineira Clézia Araújo, que há dois anos mudou-se para a Dinamarca, aumentando a frequência de viagens de peregrinação em locais da Europa.
Tânia Aparecida dos Santos, bancária aposentada, moradora de Brasília há 28 anos, participa de peregrinações há 15 anos. "O Pentecostes é um derramamento poderoso do Espírito Santo. Muita oração, muita fé e confiança na Providência Divina. O Espírito Santo é o que vem renovar tudo e nos guiar."
Nessa peregrinação para o Pentecostes, o roteiro incluiu outras paradas. Uma delas foi Cássia, uma comuna italiana na região da Úmbria, província de Perúgia, na Itália, onde Santa Rita viveu 40 anos até sua morte. Com pouco mais de 3 mil habitantes, Cássia foi um dos destinos visitados por muitos que saíram neste ano em peregrinação para Assis, local de nascimento de São Francisco, que abrigou, pela primeira vez, o Pentecostes, tradicionalmente realizado em Jerusalém.
Sim, a guerra mudou o endereço do tradicional Congresso Internacional de Pentecostes, que, neste ano, chegou a sua 12ª edição, entre 17 e 19 de maio. Apesar de menor proporção do que em Jerusalém, onde foram os congressos anteriores, Pentecostes em Assis teve uma forte carga simbólica, como ressaltaram todas as lideranças religiosas, como o padre-cantor Reginaldo Manzotti, que saiu de Curitiba para o evento, liderando um dos quatro grupos brasileiros.
"Todos os anos, nós celebramos o Pentecostes na Terra Santa. E, neste ano, nós tivemos que sair da Terra Santa e olhar para a Terra Santa e pedir paz. E não há melhor lugar do que São Francisco, o homem da unidade e da paz? Mas não é só pedir pela Terra Santa. Pentecostes é também pedir pelo Brasil, pela paz nos grandes e pequenos centros, nas periferias. Pedir a paz por todas as vítimas do Rio Grande do Sul, do Maranhão, das cidades alagadas", disse ele.
E acrescentou: "É um encontro onde pedimos pela realidade do mundo e pela realidade do nosso Brasil. E as graças são imensas. Quem não é convertido, volta convertido. E quem já é convertido, volta edificado. É uma renovação na fé".
Brasileiros em Assis
Cerca de 1.500 brasileiros, residentes no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, estavam entre os peregrinos que fizeram os roteiros religiosos para o Pentecostes, organizados pela Comunidade Católica Obra de Maria, instituição com sede na cidade de São Lourenço da Mata, no Grande Recife. Com a missão de levar os ensinamentos da Virgem Maria para o mundo, a Obra de Maria foi fundada em 1990 por Gilberto Gomes Barbosa e Maria Salomé.
Na época, eram sete jovens missionários. Hoje, a Obra de Maria tem 5 mil voluntários que realizam obras sociais, como a construção de creches, escolas, internatos, hospitais e centros de reabilitação. Tem representantes em 46 países e é reconhecida pelo Vaticano e sua maior autoridade católica, o papa.
Para essa peregrinação de Pentecostes, a Obra de Maria programou quatro roteiros, liderados pelos religiosos Frei Gilson, Irmã Kelly Patrícia e os padres-cantores Reginaldo Manzotti e Fábio de Melo. Em comum, os trajetos tinham Assis, onde todos estariam para os dias de Pentecostes, conhecendo também os locais sagrados ligados à vida de São Francisco de Assis e de Santa Clara, como a Igreja de Santa Maria dos Anjos, a Porciúncula, berço da Ordem Franciscana, o Sacro Convento e a Casa Paterna, além de uma visita ao corpo do beato Carlo Acutis.
Nascido em Londres, na Inglaterra, Carlo Acutis foi um jovem religioso que faleceu aos 15 anos, em 2006, de leucemia, e foi beatificado pela Igreja Católica em 2020. Um dos milagres do "padroeiro da internet" ou "santo blogueiro", como ficou conhecido, teria sido a cura de um menino brasileiro de 7 anos, diagnosticado com câncer no pâncreas.
Na última quinta-feira, houve um importante avanço no processo de canonização do beato, que morreu em Monza, na Itália. O papa Francisco autorizou a publicação do reconhecimento do milagre atribuído à intercessão do beato. A história de vida dele foi marcada pela evangelização por meio da internet. O jovem mantinha um blog em que compilava e contava a história de milagres. Caso seja canonizado, será o primeiro santo da geração millenium.
O corpo do beato está exposto no Santuário do Despojamento, na Igreja de Santa Maria Maggiore, em Assis, na Itália. Durante o Pentecostes em Assis, além de um testemunho emocionante, a mãe de Carlo, Antonia Acutis, doou os fios de cabelo dele, uma relíquia de primeiro grau, que já está na Matriz da Paróquia São João Paulo II, em São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana de Recife, e poderá ser vista pelos fiéis.
Gilberto Gomes, psicanalista e pós-graduado em filosofia, um dos fundadores da Obra de Maria e um dos organizadores do evento de Pentecostes, foi quem recebeu a relíquia. Ele ressaltou a importância do beato para os missionários jovens e da grande alegria que foi receber a relíquia e realizar esse evento em Assis. "Quem vem a Assis vem em busca do silêncio, da paz, da oração", diz.
Testemunhos de devoção
Estar nos locais sagrados é vivenciar a fé de muito perto. Não exatamente por visitar igrejas, casas e outros lugares que guardam a história dos santos e mártires, embora esse contato também seja extremamente emocionante.
Peregrinar é ver o milagre de perto porque ali ecoam os depoimentos de pessoas que foram curadas, amparadas, convertidas e abraçadas pelos santos de quem são devotas. Também porque é possível entender de forma muito profunda que, além das graças alcançadas, as pessoas depositam ali toda a sua esperança por dias melhores.
Não há como não se emocionar com os testemunhos de pessoas como Sandra Zanette, de 71 anos, de Curitiba, que estava pela terceira vez em Cássia para agradecer por ter alcançado a graça de se curar de um câncer. Seu depoimento emocionou a todos ali presentes.
Ela trabalha há 40 anos em uma associação universal, a Oficinas de Caridade Santa Rita de Cássia. Há muito tempo, ela é devota da santa e estendeu sua fé para toda a família. Conhece bem a história de Santa Rita. "A primeira vez que vim aqui senti algo assim: 'venha para mim que eu vou te acolher'", conta.
Durante uma pregação no santuário de Cássia, ela deu seu testemunho de fé, que depois repetiu para o grupo de jornalistas que acompanhava a peregrinação. "Tive câncer, e o que eu pedi ela me atendeu. Pedi a ela forças para enfrentar o tratamento, porque é tão difícil, e eu não sabia o que vinha pela frente, se ia dar certo. Eu disse que queria me tratar. Passei superbem pelo tratamento. Foi uma coisa que passou tão rápido que eu tenho certeza de que foi por intersecção dela", contou.
Antes de entrar no mosteiro onde Santa Rita viveu — os 15 últimos anos em um cubículo onde as freiras abriram uma pequena janela nas pedras —, o padre Fábio de Melo convidou os presentes a pedir uma graça. "Sei que muitos de nós trazemos angústias, ansiedade, pedidos. Este é o lugar da bênção. Qual é a graça que queremos alcançar?", disse.
Graças alcançadas e pedidas
Em todos os locais de peregrinação, os fiéis levavam seus pedidos ou estavam agradecendo as graças alcançadas. Afonso Celso e Maria José Queiroz são de Brasília e estavam comemorando os 50 anos de casados em San Giovanni Rotondo, cidade que também fica na região da Puglia, província de Foggia, próximo destino depois de Cássia, agora para "encontrar" Padre Pio de Pietrelcina.
De Fortaleza, veio também Ana Paula Lima. "Venho sempre agradecer ao Padre Pio pela vida que tenho. Sou mãe, tenho amigos, deixo meus agradecimentos e os pedidos para os familiares", conta. A carioca Ana Maria Tullio mora em Braga, Portugal, há cinco anos. Concluiu mestrado em contabilidade e vai cursar licenciatura em Teologia na Universidade Católica.
Foi em San Giovanni Rotondo, que Padre Pio, que se tornou, neste século, São Pio de Pietrelcina, fundou sua obra maior, dentre muitas outras: um hospital de caridade. Ana Maria disse estar emocionada: "Vou sair daqui com meu milagre hoje. Quero alcançar a graça de ver meu netinho com qualidade de vida. Ele tem autismo severo".
As dores, as graças alcançadas e as esperanças reabastecidas são comuns aos peregrinos. Durante os encontros, a sensação é que todos têm um laço que os aproxima. Ninguém tem vergonha de contar, cantar, chorar ou rezar com fervor.
Ana Maria estava no Santuário de San Giovanni, uma igreja moderna, deslumbrante, mas extremamente aconchegante, onde está o corpo de Padre Pio. Antes de chegar lá, os peregrinos passaram por Lanciano, onde Frei Gilson, um dos religiosos que lidera a peregrinação com 300 fiéis, conta a vida do santo para crianças, jovens, famílias inteiras, que se unem para ouvir atentamente.
Na segunda-feira, dia 20, todos assistiram a uma missa celebrada por esse jovem frei brasileiro na capela onde aconteceu o primeiro milagre eucarístico reconhecido pela Igreja Católica de Padre Pio. Logo no início da celebração, o Frei Gilson reforçou o quanto ele e todas pessoas presentes tiveram sorte de estarem ali, no lugar sagrado onde aconteceu o milagre de Lancia — a extraordinária transformação de uma hóstia em carne humana e do vinho em sangue humano, um dos momentos mais especiais de toda a peregrinação.
A primeira igreja de Padre Pio fora de Pietrelcina foi no Brasil, mais precisamente no Sudoeste, em Brasília.
São Pio em Brasília
Enquanto, no Vaticano, ainda ocorria o processo de canonização de Padre Pio,em Brasília, uma área foi destinada ao então beato para a construção de sua igreja, a primeira no mundo em honra ao santo italiano. Em 2000, o então cardeal de Brasília, Dom José Freire Falcão, devoto de São Pio,recebeu dele um milagre. O religioso contava que foi internado com uma grave e desconhecida doença que lhe ocasionou uma hemorragia generalizada, pediu ao então a Padre Pio que intercedesse por ele. E foi atendido. A paróquia em honra ao santo foi erigida em 8 de março de 2001, enquanto que sua canonização pelo papa João Paulo II ocorreu em 16 de junho de 2002. Depois de 23 anos,a Casa de São Pio de Pietrelcina em Brasília ganhará um prédio definitivo,próximo do atual, no Sudoeste.
Líderes Religiosos e sua multidão de fiéis
Peregrinar com a Obra de Maria é ter ainda a oportunidade única de entender o carisma dos religiosos que arrebanham multidões com a força da palavra e do canto. Liderando um grupo de São Paulo estava o padre Fábio de Melo. Em uma missa, o religioso, que tem 26 milhões de seguidores no Instagram, aproveitou para fazer um discurso crítico relacionado a influenciadores. “Nesse tempo de influenciadores, quem influencia os filhos de vocês, influenciam como, qual conteúdo usam para chamar a atenção deles e de vocês? Não permitam que a futilidade influenciem vocês e seus filhos”, disse.
O padre Reginaldo Manzotti, que tem mais de 4 milhões de seguidores no YouTube, encontrou seu grupo em Milão. Já a irmã Kelly Patrícia liderou o grupo que saiu de Fortaleza. Ela fala para mais de 3,4 milhões de pessoas apenas no YouTube. Frei Gilson é querido tanto dos jovens quanto dos mais velhos e ultrapassa os 5 milhões na mesma rede.
Estar acompanhado de lideranças religiosas como eles, que têm o dom da palavra, não deixa de ser presenciar um show de fé em cada parada.
Além das orações, os alertas e as atitudes necessárias
Nem só de orações são feitas as peregrinações. Também é uma oportunidade única para refletir, buscar o autoconhecimento, repensar as atitudes do dia a dia. Em Assis, nas proximidades da igreja Santa Maria dos Anjos, Maria Salomé, cofundadora da Comunidade Obra de Maria, escritora, pesquisadora de retiros e congressos, pós-graduada em psicanálise e uma das organizadoras do Congresso de Pentecostes, lembrou da força da história de São Francisco de Assis.
Ao ser expulso de casa pelo pai, deixou até mesmo as vestes. Caminhava pelas ladeiras e pelos becos da cidade. Ao ser indagado por um discípulo que o acompanhava sobre o porquê não tinham falado com ninguém durante todo o dia, já que estavam em uma missão de evangelização, Maria Salomé conta que ele disse: “O testemunho vale mais do que as palavras. Palavras se apagam, palavras voam. Testemunho fica e edifica. Não adianta você dizer palavras lindas. Um abraço cura, um olhar cura, um aperto de mão cura”.
Para Maria Salomé, é disso que o mundo está precisando. “As pessoas não têm mais tempo, estão aceleradas. Quando eu vejo que estou acelerada, eu paro, peço paz. Quando estou numa polêmica, eu silencio. Não quero ter razão, quero ser feliz”, acrescentou.
Os religiosos e os organizadores ressaltaram muitas vezes no Pentecostes a importância dos gestos concretos, das atitudes. Wellington da Silva Jardim, vice-presidente da Fundação João Paulo II, mantenedora do Sistema Canção Nova de Comunicação, também lembrou a importância de rever atitudes do dia a dia e de proteger a natureza para evitar desastres como o do Rio Grande do Sul.
“A gente tem que fazer, não pode simplesmente silenciar, ficar assistindo. Temos que fazer a nossa parte e contribuir. O Brasil é um país continental. Se todos ajudarem, se todo mundo der a sua contribuição, o Sul vai superar essa dificuldade”, disse.
Os números da fé
— 340 milhões é o número de pessoas que fazem turismo religioso no mundo
—15 a 18 bilhões de euros é quanto movimentam por ano
— 18 milhões é o número de viagens incentivadas pela fé no Brasil
— 15 bilhões de reais é quanto movimentam os turistas religiosos por ano no Brasil
Fonte: Organização Mundial do Turismo (OMT) e Ministério do Turismo
Principais destinos religiosos
No Brasil
— Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida
Localizado em Aparecida do Norte (SP), é considerado o maior santuário mariano do mundo. Recebe, em média, 12 milhões de romeiros por ano, segundo o portal Aleteia.
— Círio de Nossa Senhora de Nazaré
O Círio ocorre em Belém, no Pará, no segundo domingo de outubro. São esperados 2,5 milhões de fiéis, que saem em romaria pelas ruas da capital.
— Santuário de Padre Cícero
Localizado em Juazeiro do Norte (CE), o santuário atrai fiéis de todo o país em busca de curas milagrosas. A sala de ex-votos é impressionante.
— Divino Pai Eterno
A cidade de Trindade, localizada em Goiás, também atrai devotos do Divino Pai Eterno entre a última sexta-feira de junho e o primeiro domingo de julho. Durante 10 dias, já recebeu 3 milhões de pessoas.
No mundo
— Jerusalém, localizada entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, abrangendo parte de Israel, Cisjordânia e Jordânia. É chamada de Terra Santa porque tem um valor histórico para as três grandes religiões monoteístas do mundo (judaísmo, cristianismo e islamismo). Chega a receber mais de 3,5 milhões de turistas por ano.
— Estima-se que a cidade do Vaticano, sede da Igreja Católica Romana e residência do papa, em Roma, receba 6 milhões de turistas por ano.
— A cidade de Meca, localizada na Arábia Saudita, é o local de peregrinação para os muçulmanos, e considerada a cidade de nascimento do profeta Maomé, fundador da religião.
*A repórter viajou a convite da organização do evento