Especial para o Correio — Graça Ramos
A casa atrai variados visitantes. Há meses, silvestre gambá de orelhas pretas quebrou telhas e se instalou acima do forro. Como ele, sou notívaga. Passei a acompanhar sua movimentação. O predador de escorpiões recebeu o apelido de Joe. Certa manhã, abri a porta de casa e lá estava um recém-nascido e a mamãe. "Joe é Joana! Ela teve neném!", gritei. A dona de focinho longo correu. O filhote ficou. Enquanto falava com a Polícia Ambiental, uma ave bicuda agafanhou a cria. Impactou-me a rapidez da vida selvagem.
Chegaram os felinos. Na madrugada, miados, rosnados enfurecidos, ruídos de cruzamentos. Revisei telhas, fechei buracos, coloquei espuma expandida em pequenos vãos. Pouco adiantou. Contratei biólogo para recolher os gatos de rua e encaminhá-los a abrigos. Desconhecendo a procedência, sua presença é preocupante, há possibilidade de transmissão de doenças. Nas manhãs, as visitas eram micos, a deslizarem na cerca viva. Como nunca os alimento, não causaram problemas. Tornaram-se entretenimento.
As experiências com esses sencientes levantaram memórias e reflexões sobre a relação de Brasília com os animais não humanos. Ao chegar, o mais estranho foi perceber a quase ausência de pássaros. Na cidade da infância, despovoada de verde, o barro definia a paisagem, inclusive a sonora, com o u-u-u dos redemoinhos. Havia muitos cupinzeiros, de onde, ao fim do dia, saíam milhares de insetos, ora amarelos, ora alaranjados. Bailavam ao redor das modernas luminárias. Fascinada, acompanhava a festa.
Quando a paisagem sonora passou a ser dominada pelas cigarras, era das poucas a gostar daquele zunido. Achava o esquisito bonito. Havia dias em que me sentava nos bancos cogumelos da 308 Sul para viajar no ritmo do zumbido que, em concerto, elas ampliavam. Hoje, indago se, ao desenhar os jardins, o genial Burle Marx pensou naquela algazarra.
Na década em que a cidade foi povoada com muitas árvores, a ausência de um projeto de paisagismo resultou no uso de inúmeras plantas exóticas e, consequentemente, distintas aves começaram a exibir voos e cantos. A entrada em cena do Parque da Cidade ajudou a ampliar, anos depois, a frequência de pássaros, também de joaninhas, sendo outra contribuição de Burle à "renaturalização" do Plano.
Agora, aumentaram os grupos de capivaras habitantes de Brasília. Provocam afinidades e críticas. Li terem passeado pelos jardins do Congresso Nacional, mostrando estarem mais perto de nós, companheiros mamíferos. Elas também podem nos transmitir doenças, então evito me aproximar ao ver as roedoras gigantes à beira do Paranoá. Sendo honesta, temo-as, pois lembro de um vídeo do YouTube: Capivara morde? Morde sim!.
Pode soar como um aviso a presença urbana de tantos seres selvagens, assim como o aumento de gatos de rua. Além de cuidar de seu legado verde, a cidade-parque precisa ordenar práticas de coabitação entre colegas do reino animal. Sendo país onde celulares superam o número de habitantes, uma ideia é a Defesa Civil enviar mensagens informativas-educativas sobre como devemos nos comportar com os inumanos. A questão é que a recente catástrofe gaúcha, ambiental e política, mostrou que não investimos em estruturas de alerta/prevenção, fundamentais à proteção de nossas diversas populações.
Graça Ramos é escritora e autora de O apagamento de Volpi: presença em Brasília (Autêntica, 2023).
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