Um dos fenômenos muito especiais da maternidade é o deslocamento do eixo de preocupações de uma fêmea. A vida orientada para suas próprias necessidades passa a se concentrar também no cuidado e bem-estar de seus filhos.
A natureza dá uma força para que esse projeto de cuidar da cria seja bem sucedido, já que as alterações hormonais características da gravidez, do parto e da lactação permitem que o cérebro das mães seja “turbinado” nessas fases. O cérebro materno é por definição um modelo espetacular do fenômeno de neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro em criar novas conexões em resposta a um estímulo.
A maior parte das evidências de incremento de funções cerebrais com a maternidade tem origem em estudos com mamíferos inferiores, especialmente os roedores. Pesquisas apontam que não só as alterações hormonais, mas também o ambiente rico em estímulos associados à maternidade (exemplo: múltiplas novas tarefas, sons, cheiros) têm um papel importante nesse upgrade cerebral das mães.
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A maioria dos mamíferos compartilha instintos maternais de defender seu ninho e sua cria. Ao ter que optar entre sexo, drogas, alimento ou seu ratinho recém-nascido, as mamães ratinhas escolhem seus ratinhos. O cuidado com os filhotes ativa nas mães centros cerebrais de recompensa ligados ao prazer, mesmo no caso de filhotes adotivos. Esse fenômeno também foi demonstrado entre as mães humanas ao ouvir o choro dos filhos, ou simplesmente ao olhar para eles.
Em ratinhas, temos evidências de que a maternidade provoca aumento do volume dos neurônios e mais conexões em algumas regiões cerebrais. Mais recentemente, tem sido demonstrado também o fenômeno de geração de novos neurônios. As mães passam a apresentar melhor desempenho em orientação espacial e memória, ficam mais corajosas e rápidas para capturar a presa, e com menos sinais de ansiedade em situações de estresse. Tudo em prol de uma maior capacidade de alimentar as crias. Artemis é ao mesmo tempo a deusa grega do parto e da caça.
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E esses efeitos parecem durar bastante. As mamães ratinhas chegam ao equivalente humano de 60 anos de idade com melhor desempenho e coragem, além de menor declínio cognitivo e também menos sinais de degeneração cerebral quando comparadas a ratinhas virgens da mesma idade.
Cerca de 80% das mulheres na gestação, especialmente no terceiro trimestre, queixam-se de menor desempenho cognitivo, e alguns estudos confirmam essa tendência, mas demonstram que a intensidade não chega a atrapalhar as atividades do dia a dia. Temos evidências também que, após o parto, a mães recuperam suas habilidades e ficam até mais eficientes do que antes da gravidez. O atual corpo de evidências, juntando resultados de modelos animais e humanos, nos permite pensar que a maternidade colabora para uma maior reserva cognitiva, deixando as mulheres mais resilientes ao processo de envelhecimento cerebral. Entretanto, conclusões ainda devem ser tratadas com muita cautela, pois há muito que se investigar ainda, especialmente no impacto de longo prazo da maternidade sobre o cérebro.
As mães modernas, com suas rotinas de malabaristas, devem apresentar adaptações cerebrais mais robustas do que as dos modelos animais, já que são submetidas a um nível de estimulação ambiental como nenhuma outra espécie. Além de cuidar da cria e de sua própria sobrevivência, protagonizam diversos outros papéis simultâneos (esposa, amante, conselheira, profissional, dona de casa, etc.). É estímulo para dar, vender e jogar fora.
*Ricardo Afonso Teixeira é doutor em neurologia pela Unicamp, professor do curso de medicina do Unieuro e neurologista do Instituto do Cérebro de Brasília
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