Especial para o Correio — Dante Accioly
Venho de um tempo desbotado, de um lugar cada vez mais distante de mim. Ruas de calçamento, muros baixos. Uma cidade de memória confusa e tortuosa, pela qual eu costumava cambalear sem destino até desembocar na areia branca da praia.
Ainda não havia aquela cordilheira de espigões à beira-mar. Do meu bairro suburbano dava para ver as dunas da Praia do Futuro. E ele — o futuro — estava sempre à altura da minha vista. Naquela Fortaleza do passado, sonhar com o amanhã não exigia movimentos bruscos: bastava abrir os olhos e olhar para frente.
O verde do Atlântico e o cheiro da maresia eram combustível suficiente para os mais mirabolantes planos. Se eu queria ser astronauta ou trapezista, aviador ou maquinista, roqueiro ou repentista, tudo parecia possível para uma imaginação embalada pelo vaivém das ondas.
Os geógrafos vão dizer que é improvável, mas peguei uma canoa naqueles verdes mares e remei até a Bacia do Paranoá. Amarrei meu bote à beira-lago e, com os pés ainda metidos na água, olhei para frente porque queria sonhar — como fazia na velha Fortaleza.
Não consegui
Quanto mais encarava Brasília nos olhos, mais via eixos rodoviários; e amplos gramados cortados por veredas em hipotenusas; e placas com siglas incompreensíveis; e passarelas subterrâneas; e escadas rolantes em rodoviárias; e corujas-buraqueiras em encostas de tesourinhas; e conjuntos nacionais; e prédios recatados que expunham suas intimidades sob pilotis sem muros.
A delicadeza concreta da capital me arrebatou. E, se eu insistisse em sustentar o olhar de frente para ela, jamais conseguiria devanear sobre o futuro outra vez. Porque eu queria Brasília agora, não depois. Queria agora e para sempre.
Simétrica e plana, Brasília não me desequilibrava em direção a canto algum. Se eu queria ir de um ponto a outro neste imenso tabuleiro cartesiano, não bastava me entregar ao fluxo natural da correnteza em direção à praia — porque não havia praia. Era necessário motu próprio. Era preciso ter vontade e — como eu não tinha carro — muita disposição para caminhar.
Palmilhei entrequadras, comércios locais, setores hoteleiros, bancários, militares e de áreas isoladas. Descobri bodegas, padarias, farmácias, lojas de ferramentas, verdurões, bares e barbeiros que frequento até hoje. Caminhei pelo acostamento de eixões, eixinhos, epias e epigs. Mas foi olhando de lado, mirando encabulado as janelas das superquadras que me vi reaprendendo a sonhar.
Andando por entre os prédios de Brasília, eu tentava decifrar os sinais de vida que emanavam de cada uma daquelas insinuantes escotilhas. Buscava descobrir o que os moradores faziam, do que gostavam, com o que trabalhavam. Eu era um voyeur da vida alheia.
Reparava nas cores das paredes, no estilo dos móveis de andares mais baixos. O violão pendurado no armador da rede, o vaso de planta no parapeito, o gato espremido contra a tela de proteção, a mão de unhas pintadas despejando cinzas de cigarro, a bandeira do time colada na vidraça, o adesivo da loja que nem existe mais. Tudo aquilo significava um cardápio de possibilidades, de caminhos a escolher, de utopias e quimeras a acalentar.
Ontem à tarde, passados tantos anos desde que enfiei os pés nas águas do Paranoá pela primeira vez, saí de casa e parei sozinho na frente da minha própria janela. Cheguei a duas importantes conclusões: sou feliz com os sonhos que escolhi para mim; e preciso dar uma boa demão de tinta nessas grades.
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